Qual o papel dos
consumidores no mundo contemporâneo? Seguem todos eles os desígnios impostos
pelo mercado, quais sejam de entrar e sair de lojas de departamentos,
supermercados, lojas de prestação de serviços, feiras, ruas de comércio, enfim
do conjunto da meca do comércio e serviços, para darem conta de suas
necessidades de consumo.
Como lembrava Marx tempos atrás, a construção
capitalista da forma de produção de bens, mas também de serviços, quando
mercadorias à disposição do consumo final, acabou por encobrir as etapas
anteriores de fabricação dos produtos.
O chamado fetiche das mercadorias, a necessidade
ou o glamour da aquisição de produtos, faz com que o consumidor adquira sua
cesta de necessidades de bens e serviços, como pacote fechado, isto é, sem identificar
quem produziu, com que produziu e em que condições foi produzido.
Assim, os grandes grupos vendem o marketing
embutido nos produtos como o sinal mais evidente de sucesso, experiência e
qualidade. A tecnologia dos carros modernos, a beleza dos efeitos dos produtos
cosméticos, a resistência das fibras das malhas e tecidos de roupas em geral,
os tênis que levam os usuários a terem impressão de voarem ou andarem
descalços. E assim por diante.
Na época histórica do artesanato, o mercado era
formado por bens e serviços dos quais se conheciam os seus produtores. Sabia-se
das características de cada um, suas habilidades, as qualidades de seus
produtos, toda a sorte de informações que levava o comprador a ir em busca dos
produtos daquele artesão e só dele.
Hoje ao se ir ao mercado, o grande mercado
moderno, espalhado em suas mais variadas formas de apresentação de produtos e
serviços, em ruas, alamedas, shoppings, entre outras modalidades, não se tem
mais essa informação. Compra-se somente o produto final e de que grupo
industrial o fabricou. Nada mais.
E por que não se sabe mais? Uma das razões
básicas mais determinantes é o fato de o consumidor moderno não ir em busca
dessa simples informação. Ao adquirir o produto, ele compra o pacote fechado,
caixa preta, apenas para seu uso pessoal. Para sua necessidade ou satisfação.
Não se dá conta, no entanto, que ao fazer assim
ele está também aceitando as condições finais da compra, as quais não revelam
as etapas anteriores de produção: quem de fato produziu, em que condições de
trabalho e fabricação e em que estado do meio ambiente.
Ao assim proceder, todos nós consumidores
estamos garantindo que os produtos adquiridos sejam reconhecidos como tais e
garantindo que eles continuem a ser produzidos do mesmo modo dali para frente.
Estamos comprando produtos e suas condições de trabalho e produção. Somos os
responsáveis finais pela manutenção continuada dos mesmos produtores e de suas
estratégias de fabricação e venda.
Nós consumidores somos responsáveis ao fim e ao
cabo por ratificar a forma de produção do capitalismo contemporâneo. Querendo
ou não. Compramos às escuras e os produtores mantém às escuras as formas com as
quais extraem, organizam, fabricam e vendem seus produtos. Nossas compras no
mercado chancelam tudo isso.
Assim, não adianta se assustar ao descobrir que
grandes grupos industriais modernos utilizam mão de obra escrava na fabricação
de seus produtos, ou mão de obra infantil, ou inseticidas e produtos
transgênicos na produção de hortaliças, grãos e achocolatados. Entre tantos
outros.
Nem mesmo se indignar pela depredação do meio
ambiente, degradação das condições de trabalho, utilização intensiva de
trabalhadores clandestinos e crianças, corrupção localizada ou disseminada,
escassez de produtos por estratégia empresarial.
Há que se desvestir da roupa de consumidores e
desvendar a caixa preta dos produtos expostos no mercado. Nós consumidores
temos de assumir o papel de investigadores do que compramos, do que consumimos,
do que garantimos a permanência no mercado.
Vejam um exemplo clássico de combate e
resistência dos consumidores. Em 1995 o governo britânico, ao apoiar a Shell UK
de afundar sua instalação de reserva de petróleo Brent Spar no mar do Norte a
2,5 quilômetros de profundidade no oceano Atlântico, recebeu uma pressão
inusitada da população europeia com o apoio do Greenpeace.
A oposição pública e política, ao lado do
boicote generalizado aos postos de gasolina (estações de serviços) da Shell,
além de outros incidentes localizados, fez com que a empresa abandonasse seu
intento, recuperando a instalação ao traze-la para a terra. Em 1998 parte dela
foi reutilizada na construção de novas instalações portuárias próximas a
Stavanger, Noruega.
Os consumidores desempenharam seu devido papel
como compradores conscientes. Mais que isto, como re-orientadores dos
interesses das empresas, do capital, em benefício do meio ambiente no caso,
para que a produção de petróleo atendesse o mínimo de respeito, garantia e
proteção da natureza, mas também da população.
Outros exemplos anteriores foram anunciados nos
casos de denúncias de grandes empresas ofertando em suas dependências produtos
feitos por mão de obra infantil (Nike) e mão de obra escrava (Zara, Gregory,
C&A). Já a Starbucks estaria no rol daquelas que defendem as empresas que
vendem produtos transgênicos como se fossem naturais, orgânicos.
Na contramão desse movimento de resistência dos
consumidores, o Congresso Nacional do Brasil acabou de aprovar a retirada da
letra “T”, designando transgênico, dos produtos que mantém esses ingredientes
na sua fabricação. Assim, volta o consumidor a adquirir gato por lebre, mais
uma vez enganado por venda às escuras. Sofre o meio ambiente, é afetada a saúde
dos consumidores, mantém-se os interesses do capital.
Do consumidor virtual ao consumidor real, essa a
proposta de retomada dos movimentos sociais. Talvez uma alternativa mais
vigorosa, eficiente e benéfica para todos. Dar limites à acumulação predatória
do capital. Ganha o consumidor, satisfaz plenamente a sociedade, salva-se o
meio ambiente, humaniza-se as condições de trabalho e produção.
Acima de tudo consegue-se fazer frente à sanha
desenfreada do capitalismo de a tudo explorar para lucrar sempre mais e mais
independentemente dos trabalhadores, dos cidadãos, da natureza.
Toda caminhada começa nos primeiros passos.
Cobranças e resistências dos consumidores aqui e ali podem se generalizar e dar
conteúdo a um movimento social de protesto consciente e consistente. Deixamos
de assinar cheques em branco às empresas e passamos a pagar com os olhos e
ouvidos abertos.
A sociedade de amanhã, nossos filhos e netos,
vão agradecer nossos primeiros passos e deverão eles seguir em frente levando a
bandeira de um mundo melhor, mais saudável, ético e responsável. Carta Maior