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raquel avolio
zejane cardoso (facebook)
A depressão é vista como um dos principais males
da modernidade, mas a doença está presente ao longo da história como uma das
mais frequentes formas de desequilíbrio em seres humanos. Aventure-se em uma
breve análise intimista do monstro conhecido por matar lentamente, e com
requintes de crueldade
Um, dois, três... vá, você
consegue. Você não apenas consegue, você também precisa. Um, dois, três... por
favor, vamos, você não tem o dia inteiro.”
A frase acima assemelha-se ao discurso de alguém que tenta escalar
uma montanha ou atingir alguma meta que requere esforço anormal, mas é só o
tipo de coisa que um indivíduo deprimido fala para si mesmo ao tentar levantar
da cama num dia comum. A depressão não é algo poético, ao contrário do que
muitos pensam, e não é assunto para ser romantizado. Há um mito que cerca a
condição, e ele precisa ser extinto. A depressão não ajuda pessoas criativas. O
sofrimento pode inspirar, mas a depressão paralisa. É uma doença cruel,
dolorosa e insidiosa, que leva o hospedeiro a ter vontade de pedir ajuda para
tomar banho, pentear cabelos e escovar os dentes: ela leva embora a energia
vital presente em cada um de nós, transformando tarefas simples como se
alimentar em tarefas complicadas como erguer um monumento. É uma máxima: não há
beleza na depressão.
Muitas vezes os incentivos não geram resultados, todo e qualquer
esforço falha ou parece falhar, e a desistência se apresenta como a única saída
viável. Após a ideia da desistência criar raízes firmes, a idealização do grand
finale, o suicídio, parece se formar na mente do doente, límpida e nítida como
uma pintura ou até mesmo como um filme.
Os mais diversos cenários são imaginados: do envenenamento (costuma
ser descartado, pode ser extremamente doloroso e falho) até o tiro fatal da
misericórdia, da auto-defenestração até a overdose, tudo é levado em
consideração. Os prós e contras são ponderados. É possível que o deprimido
considere que é melhor deixar o tiro pra lá, afinal, ninguém gosta de limpar
sujeira, e morrer de forma serena não parece uma má ideia. Para completar,
conseguir uma arma não é muito fácil em grande parte dos casos. Infelizmente,
muitos doentes abraçam algum dos métodos, o método escolhido decide abraçar de
volta, e é assim que o monstro consegue mais um soldado para seu exército em
constante expansão.
Mas é difícil que pessoas vivas cometam suicídio: a maior parcela dos suicidas
é constituída de mortos que caminham entre os vivos, até que se cansam do ciclo
vicioso e estabelecem o que acreditam ser um fim definitivo para a dor.
Ainda bastante incompreendida, a condição leva os portadores a
serem vítimas de preconceitos e julgamentos, estes que são alguns dos
principais aspectos sociais da doença. Além de suportarem diversos martírios
dentro de si mesmos, depressivos são julgados “preguiçosos”, “inúteis”, muitas
vezes escutam insultos de pessoas próximas, aquelas que deveriam ajudar e
cuidar: “Levante daí, você não cansa de ficar nessa cama o dia inteiro?”, “E
então, quando você vai decidir fazer algo da sua vida?”, “Você parece bem, não
parece doente, está rindo, será que não poderia fazer algo que preste?”, “Me
poupe, isso não passa de frescura”.
Além disso, é comum que pessoas deprimidas não suportem ouvir o
termo “reagir”. “Reaja!”, o mundo parece gritar em uníssono. Por favor, parem.
É uma situação extremamente delicada. Não é assim que funciona, não foi e nunca
será. Depressão não é tristeza. Estamos reagindo, mas estamos acorrentados, e
do que adianta tentar fugir quando seu carcereiro decidiu te acorrentar? O
único resultado que será possível obter é o cansaço, e nossos corpos já não
comportam mais qualquer adição de cansaço. Estamos fazendo o possível.
Não há depressão que seja igual. Diferentemente da gripe ou de qualquer outro
vírus terrível que possa torturar nossos corpos, a depressão é única para cada
portador, o que faz dela um martírio solitário. É a doença da solidão, do
isolamento, e, por fim, da ausência de amparo. Muitas pessoas deprimidas são
abandonadas ou ignoradas por seus familiares, cônjuges e amigos quando mais
precisam de conforto e ajuda. As pessoas cansam e vão embora. Não queremos dar
trabalho, não queremos causar desconforto, mas precisamos de amor. Não pedimos
para ter uma doença. Da mesma forma que alguém não escolhe um câncer, não
escolhemos desenvolver a depressão.
O amor é um aliado porque nos fortalece, e nos torna mais
esperançosos no que tange a luta diária por coisas que não deveriam envolver
lutas: é como se, ao sentirmos que somos amados, estivéssemos lutando com um
propósito que não é apenas o de permanecermos vivos. Se você conhece alguém que
sofre de depressão, demonstre compaixão. Desenvolva sua empatia, ela pode
salvar uma vida. Se você sofre de depressão, tente buscar o amor. Se não o
encontrar no outro, busque-o dentro de si.
Como se não fosse doloroso o suficiente o fato de estarmos sendo
julgados com frequência, também ocorre de sermos interpretados das piores
formas possíveis. O inferno parece não ter fim: se elaboramos alguma desculpa
para não sairmos de casa em determinado dia, somos péssimos amigos. Mas não
somos, na verdade. Acreditem que zelamos por nossas amizades, acontece que não
queremos preocupar ninguém ao sermos obrigados a dizer coisas como “desculpe,
hoje não, talvez na semana que vem, sabe, faz três dias que tento sair da cama
e não consigo, mas hoje consegui ir até a cozinha e fazer um lanche, de tanta
felicidade por ter feito isso eu poderia dançar frevo se tivesse alguma energia
restante”. Ou então: “não acho que é uma boa ideia ir naquele encontro de hoje,
eu acabo de ter uma crise de choro no chão do meu quarto e agora estou deitada
em posição fetal”. A maioria das vítimas da depressão crê que é bom evitar
contribuir para que sejam vistas como “loucas”, e omitem detalhes de suas lutas
diárias contra a doença na tentativa de sentirem-se mais “normais”.
Mas, afinal, o que é a normalidade? O que é normal para um peixe é
completamente insano para uma zebra. Os conceitos de “loucura” e “normalidade”
foram bastante distorcidos ao longo da história da humanidade, e, em todo caso,
são tão relativos e complexos quanto o conceito de “perfeição”: se o que é
perfeito para um não é perfeito para outro, a perfeição absoluta não existe. E
a tentativa de se enquadrar no padrão do supostamente “perfeito” ou até mesmo
da “normalidade” é uma grande armadilha. Não é possível se enquadrar no que não
existe. De perto, somos todos uns loucos, e nem toda loucura é algo negativo.
A depressão é traiçoeira, e costumo compará-la com uma árvore
repleta de galhos. Dificilmente um deprimido será apenas um deprimido. Muitas
vezes ele também é ansioso, é bipolar, é borderline, é obsessivo-compulsivo, é
anoréxico, é bulímico, é vítima de transtorno do estresse pós-traumático, é
esquizofrênico. Há uma miríade de condições que podem acompanhar a depressão, e
elas caminham lado a lado, em algo que pode ser visto como uma espécie de
complô para drenar a vida da vítima.
Muitas vítimas da depressão insistem no fato de que, na verdade,
não estão doentes, não estão deprimidas, não precisam de ajuda, mas estas
pessoas não apenas estão deprimidas como também possuem outras condições
eclodindo no fundo de suas mentes: condições tão complicadas e dolorosas quanto
a depressão em si.
Por experiência própria, é válido ressaltar que a meditação pode
ser como o oásis no deserto da tormenta para algumas pessoas. Foi o meu caso.
Através dela, é possível reestabelecer um tipo de conexão com seu verdadeiro
eu, conexão esta que é muitas vezes destruída pela depressão, fazendo com que o
deprimido sinta-se “completamente perdido” e não saiba para onde ir, quem
procurar ou o que fazer. A meditação leva clareza para onde há escuridão: é
como a amiga solícita que bate na sua porta e te entrega uma lanterna ao ver
que faltou luz em sua casa. Há os que preferem antidepressivos, mas a
eficiência de tais medicamentos é propensa a questionamentos e é tema de
debates acirrados entre psiquiatras: apesar de algumas obterem verdadeiro
êxito, nem todas as pessoas respondem bem ao tratamento com intervenção
medicamentosa. Sempre nutri certa recusa ao tratamento com auxílio de fármacos
por medo de virar uma escrava das companhias farmacêuticas, que, segundo
algumas pessoas, tratam clientes, e não doentes. A última coisa que preciso, eu
costumava dizer para mim mesma no auge da dor, é virar dependente química
agora: já estou no meio de uma luta e não creio ser necessário participar de
outra.
Por ser natural, procurei refúgio na meditação, e descobri que é
possível estabelecer paz no caos. É possível decorar o abismo de forma a
torná-lo habitável, e o resgate não é imediato, mas ele acontece. E, quando
você menos espera, pode se ver fora do abismo pela primeira vez em muito tempo.
É uma sensação única, talvez inigualável, e pode ser comparada com o ato de
receber um novo par de olhos: é como enxergar o mundo pela primeira vez
novamente.
Talvez um dia os grandes cientistas desenvolvam a arma definitiva
para aniquilar o monstro para sempre.
Até lá, resta a luta.