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Estupros por
cônjuges não podem ser criminalizados na Índia porque o casamento é sagrado no
país, declarou um ministro no Parlamento indiano. O comentário causou polêmica,
em meio a casos chocantes de violência sexual cometida por maridos divulgados
recentemente pela mídia indiana. O repórter Parul Agarwal, da BBC Hindi (Seção
em hindu do Serviço Mundial da BBC), explica a controvérsia:
Amarrando e desamarrando nervosamente um pedaço de
pano sobre seu rosto, Rashmi (o nome é fictício) tenta encobrir sua identidade
enquanto se prepara para dar uma entrevista para a câmera. "Se o dono da
casa que alugo me identificar, serei despejada", ela diz.
Com 25 anos, ela é uma entre as muitas vítimas de
estupro marital que lutam por justiça na Índia.
"Para ele, eu era apenas
um brinquedo que ele podia usar de maneiras diferentes todas as noites. Quando
brigávamos, ele se vingava na cama. Às vezes, eu implorava para ele me deixar
em paz porque não me sentia bem, mas ele não aceitava um não, nem mesmo quando
eu estava menstruada", diz Rashmi.
Na Índia, o estupro de uma esposa pelo
marido não é crime. E muitos acreditam que o casamento é uma fonte de prazer
sexual para o homem, portanto, as mulheres têm de se submeter.
Em fevereiro,
a Suprema Corte da Índia rejeitou o pedido de Rashmi para que o estupro marital
fosse declarado um crime. O tribunal disse que não se podia ordenar uma mudança
na lei para atender a uma pessoa.
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A história de
Rashmi é semelhante à de qualquer outra jovem com bom nível educacional na
Índia que se apaixonou por um colega do escritório e se casou com ele. Mas o
relacionamento dos dois nunca envolveu "consentimento" e
"igualdade", ela diz.
Ativistas vêm,
já há algum tempo, fazendo campanha para que o estupro marital seja
criminalizado na Índia.
Após o estupro
e assassinato de uma estudante por uma gangue em Nova Déli, em dezembro de 2012,
formou-se um comitê para sugerir reformas à lei criminal no país. O comitê
recomendou que o estupro marital passasse a receber o mesmo tipo de punição que
qualquer outro estupro.
O governo,
liderado na ocasião pelo Partido do Congresso, rejeitou a recomendação.
Vítimas de
estupro marital, no entanto, se recusam a abandonar a batalha.
Pooja, mãe de
três filhas, sofreu em silêncio por 14 anos antes de ganhar coragem para abrir
um processo contra o marido por violência doméstica. A principal razão para a
separação, ela diz, foi "sexo violento e à força".
"Eu não
tinha direito de dizer não porque era sua esposa. Eu estava cuidando das
crianças e da casa sozinha, mas ele nunca teve qualquer consideração."
Hoje, Pooja
está separada do marido, mas se recusa a lhe dar o divórcio porque isso
permitiria a ele se casar de novo.
"Não
posso deixar que ele me use e depois encontre outra mulher e destrua a vida
dela. Não quero o divórcio, quero que ele seja punido", ela diz.
O advogado da Suprema Corte Karuna Nundy, que se
especializa em litígios envolvendo direitos humanos e Justiça de gênero, diz
que a lei indiana oferece pouco apoio para vítimas de violência marital.
"No momento, uma esposa pode abrir um processo
com base na lei de violência doméstica, e ele será julgado em uma corte civil.
A lei dá à mulher o direito legal de se separar do marido alegando
crueldade", explica o advogado.
"Mas qual é o recurso legal para punir o ato
do crime? Qualquer ato sexual que é forçado ou está sendo feito sem o
consentimento da mulher é crime. O relacionamento da vítima com o autor do
crime não faz diferença", argumenta o advogado.
Estudos feitos ao longo dos anos indicam que
violência sexual no casamento é comum na Índia.
Dez por cento das entrevistadas na última Pesquisa
Nacional de Saúde da Família feita no país disseram ter sido forçadas pelo
marido a ter relações sexuais. A pesquisa, feita entre 2005 e 2006, envolveu
124.385 mulheres de 25 Estados indianos.
Um terço dos homens entrevistados em outro estudo,
feito no ano passado pelo International Centre for Women (ICRW) e o Fundo de
População das Nações Unidas (UNPFA), admitiu ter forçado suas esposas a ter
relações sexuais. O estudo envolveu sete Estados do país. Em cada estado, 9.205
homens e 3.158 mulheres com idades entre 18 e 49 foram entrevistados.
As vítimas do estupro marital dizem travar uma
batalha solitária porque seu sofrimento não se enquadra em nenhuma das
categorias do sistema legal indiano. E ainda por cima, elas dizem, a sociedade
com frequência as culpa por denegrir a instituição do casamento.
Mesmo assim, um grupo de defesa dos direitos dos
homens, a Save the Family Foundation, adverte contra a criminalização do
estupro marital.
"Nós já observamos como a lei 498A, contra o
dote, foi utilizada de maneira errônea por mulheres na Índia para assediar
homens e suas famílias. A Central Woman Commission of India (Comissão Central
de Mulheres da Índia) admitiu que muitos casos de estupro relatados anualmente são
falsos. Como pode alguém provar o estupro marital? Levar o quarto para o
tribunal é uma ideia perigosa", diz o porta-voz do grupo.
A entrevista com Rashmi vai chegando ao fim. Ela
retira o pano que cobre seu rosto e diz: "Em cada audiência no tribunal, vejo
meu marido e sua família, não parecem afetados nem sentem qualquer remorso pelo
que aconteceu".
"Por que uma mulher tem de esconder sua
identidade para parar de ser acuada? Por que sou mal vista por dizer ao mundo
que fui estuprada pelo meu marido?"