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davi soares
Há apenas quatro anos, Alagoas evoluiu sua legislação
para coibir a prática da cultura circense de utilizar animais em espetáculos. A
base legal era que aquela cultura de exibir bichos domados com violência e
mantidos em condições de maus tratos não servia mais à sociedade consciente da
relação respeitosa que deve ter com a fauna, seja selvagem ou domesticada. Mas
eis que o governo de Renan Filho (PMDB), por meio da secretária estadual de
Esportes, Claúdia Petuba, decide incentivar
a prática da violência contra os animais, elevando o espetáculo
cruel à condição de política pública de esporte.
A equivocada decisão da também presidente estadual do
PCdoB foi anunciada na noite de quinta-feira (7) juntamente com a iniciativa de
incentivar a cultura da capoeira. Outro erro foi o de colocar em pé de
igualdade a cultura da capoeira e a vaquejada. Sendo a primeira, nascida da resistência
dos negros contra a escravidão no Quilombo dos Palmares, com aspecto cultural e esportivo carente
de incentivo e de reconhecimento, depois de séculos resistindo ao racismo.
Quanto a incentivar a vaquejada como esporte de interesse
público, o primeiro questionamento que se faz é como? Como medir o retorno
social do investimento feito? Haverá algum "centro de treinamento"
de vaqueiros, ou o dinheiro público vai parar nos bolsos dos já estribados
proprietários de cavalos, cujos animais com boa genética em início de carreira
chegam a ser vendidos a partir de R$ 50 mil? Cavalos quarto de milha
campeões de vaquejada, podem custar entre R$ 100 mil e R$ 200 mil.
Entidades protetoras dos animais devem resistir à
iniciativa do Estado de fortalecer o braço que violenta animais nas arcaicas
arenas medievais. Na opinião da protetora de animais Naíne Teles, do Projeto
Acolher, é contraditório investir recursos públicos nas vaquejadas, enquanto o
alagoanos carecem de atenção às políticas de atendimento à saúde animal e de
controle de zoonoses.
"Se isso acontecer, será um gasto mal investido. O
que não falta é bicho precisando de ajuda, de medicamento e de atendimento
médico-veterinário. É meio contraditório, pois vão investir dinheiro em um
esporte que só maltrata o animal. Embora muitos dizem que não sofre, a gente
sabe que em vaquejada o animal sobre. No lugar do governo fazer algo em prol
dos animais, ele está fazendo contra. Nada dá certo, por exemplo, quando se
fala em hospital público veterinário ou propor leis que ajudem os animais. Mas,
para legalizar algo que não é bom, eles fazem", opinou Naíne Teles.
Inconstitucional
Para aqueles que querem encontrar neste texto algum ranço
de preconceito, vou poupar detalhes sobre as fraturas, rabos arrancados (assista aqui) e
estresse vividos pelos animais de vaquejada, principalmente os bovinos jogados
ao chão de forma violenta com o auxílio de animais de outras espécies, uma
delas a espécie humana. Por isso, entro logo na questão jurídica sobre o tema,
dando voz ao que diz a Procuradoria Geral da República (PGR), na Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 4983, que tramita há quase dois anos no Supremo
Tribunal Federal (STF), na tentativa de confirmar a inconstitucionalidade de
uma lei que regulamenta a atividade como uma prática esportiva e cultural, no
Ceará.
Para o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, a
prática da vaquejada é inconstitucional, “ainda que realizada em contexto cultural”.
E o artigo da Constituição Federal desrespeitado pela vaquejada é o 225, com o
seguinte texto:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1o. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público: [...]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Diz Janot, na manifestação da PGR nos autos do processo:
“[...] É ressabido que as vaquejadas traduzem situação notória de maus tratos a
animais. A prática é inconstitucional, ainda que realizada em contexto
cultural. [...] A violência contra os bovinos e equinos envolvidos nas disputas
de vaquejada é inerente à prática. O fato de a lei reduzir tal violência não
torna a conduta aceitável, em face do plexo constitucional. [...]O fato de a
atividade resultar em algum ganho para a economia regional tampouco basta a
convalidá-la, em face da necessidade de respeito ao ambiente que permeia toda a
atividade econômica (art. 170, VI, da Constituição)”.
A PGR também lembra que o STF, quando analisava caso
similar que tentava legalizar a “farra do boi”, em Santa Catarina, a Corte
Suprema decidiu que a “obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício
de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das
manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo
225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os
animais à crueldade”.
A ADI 4983 contra a lei cearense ainda tramita no STF,
sob relatoria do ministro Marco Aurélio. Enquanto não é concluída a tentativa
de invalidar a lei estadual cearense, a capital, Fortaleza, sancionou há um ano
uma lei municipal que proíbe a realização e divulgação de vaquejadas, rodeios e
qualquer outro evento que
exponha animais a maus-tratos na capital cearense.
A secretária Cláudia Petuba não quis opinar sobre a
reação da militância de protetores dos animais, nem sobre o viés mais
cruel da cultura da vaquejada, a violência contra animais. "Quando eu
tomar conhecimento do posicionamento delas [entidades de proteção aos animais]
e elas entrarem em contato ou quando a matéria já tiver sido publicada, a gente
pode vir a comentar esse tipo de posicionamento", respondeu a secretária,
ao negar claramente que não queria antecipar sua opinião sobre os maus tratos.
Como seria dito na cultura da vaquejada, “zero boi” para o
incentivo do Estado a uma prática claramente inconstitucional, "fora
da faixa".