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daniel mello
Medo é a primeira palavra usada pelos jovens infratores
para definir a experiência com os sistemas Judiciário e socioeducativo. “Tenho
medo, como o medo que estou agora”, revelou Anderson*, de 16 anos, sobre o que
sentia em relação à possibilidade de redução da maioridade penal, de 18 para 16
anos, em discussão no Congresso. Era a segunda vez que o tráfico de drogas o
levava a passar por um processo nas varas especiais da Infância e Juventude da
cidade de São Paulo. O fórum, que em 2014 julgou 13,4 mil processos de atos
infracionais, é considerado o maior do gênero na América Latina.
Acompanhado da mãe, o jovem temia não só as possíveis
repercussões da discussão na Câmara dos Deputados, mas também a decisão do juiz
que seria anunciada em breve.
Ele aguardava a audiência em uma fila na porta da 4ª Vara
de Infância e Juventude. O prédio, construído em 1910, fica no bairro do Brás,
zona leste paulistana. As salas são montadas com divisórias de escritório e os
corredores são estreitos para o grande fluxo de pessoas. Sem bancos ou
cadeiras, os adolescentes e as famílias aguardam as audiências em pé.
“Veja esse fórum, onde nós tratamos da geração futura,
que são os infratores. Um prédio caindo aos pedaços que já devia ter sido
restaurado, reformado, estruturado”, reclama o juiz titular da 4ª Vara e
coordenador do fórum, Raul Khairallah de Oliveira e Silva.
A estrutura física das varas reflete, na opinião de
Khairallah, a falta de prioridades do Poder Público no tratamento do jovem
infrator. “Vai lá no Fórum Criminal na Barra Funda, veja a estrutura que eles
têm. Parece uma cidade. Um monte de policiais para fazer escolta e tudo mais.
Ali você está lidando com criminosos que você dificilmente vai ter como
ressocializar”, compara o magistrado que também foi juiz criminal. “Enquanto
você está na fase de desenvolvimento, a chance de você poder fazer alguma coisa
para a ressocialização é infinitamente maior”, enfatiza.
Sempre com o olhar baixo e as mãos para trás, ainda que
não estivesse algemado, Anderson relatou que a segunda apreensão estava
relacionada à anterior. “Eu tinha que pagar as drogas que eu perdi na primeira
[apreensão]”, contou o jovem que foi pego novamente vendendo cocaína.
Pelo flagrante, o adolescente estava há um mês e seis
dias internado provisoriamente, como ele mesmo informou com precisão. Sobre a
passagem pela Fundação Casa, Anderson tinha críticas. “Tudo errado”, resumiu
levantando o rosto pela primeira vez durante a entrevista. “O jeito que nos
tratam lá, agredindo e batendo”, detalhou.
“Em muitas
unidades, em vários locais do país, inclusive São Paulo, existem inúmeras
denúncias de maus-tratos, tortura e ociosidade. Mas são casos mais pontuais,
enquanto o problema é mais generalizado quando nós tratamos do sistema
penitenciário”.
Apesar dos problemas, o advogado e membro do Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo Ariel de Castro
Alves acredita que o sistema socioeducativo ainda possibilita maiores chances
de recuperação para os infratores do que as penitenciárias. “Em muitas
unidades, em vários locais do país, inclusive São Paulo, existem inúmeras
denúncias de maus-tratos, tortura e ociosidade. Mas são casos mais pontuais,
enquanto o problema é mais generalizado quando nós tratamos do sistema
penitenciário”, avaliou.
“Se ocorresse um aprimoramento para cumprir corretamente
o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei das Medidas Socioeducativas de
2009, certamente nós teríamos muito mais resultados no sentido de reduzir ainda
mais a reincidência”, acrescenta Ariel.
Opinião que coincide com a do vice-presidente do
Movimento do Ministério Público Democrático, Tiago Rodrigues. “Se nós não
utilizamos todas as ferramentas, todos os recursos que a lei já nos dispõe, de
que adianta ampliar isso?”, questiona o promotor que atua na área da Infância e
Juventude da capital paulista sobre a proposta de reduzir a maioridade penal.
Entre as medidas que Rodrigues considera subutilizadas
está a semiliberdade, quando o jovem trabalha e estuda durante o dia,
retornando para a unidade de internação para dormir. “De modo que o assistente
social, o psicólogo e toda a equipe técnica envolvida no processo de reeducação
possa observar um comportamento muito mais natural desse adolescente e
verificar, com precisão, se ele está preparado para voltar ao convívio
comunitário.”
Segundo um levantamento feito com os 3,36 mil casos que
passaram pela promotoria da Infância e Juventude entre agosto de 2014 e março
de 2015, apenas 271 adolescentes, dos 1.232 que passaram por internação no
período, progrediram para a semiliberdade. “Os demais foram direto da
internação para o meio aberto”, destacou.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê seis
medidas socioeducativas que podem ser aplicadas a adolescentes a partir dos 12
anos: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à
comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. A medida é
aplicada de acordo com a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias do fato e a
gravidade da infração.
Após um mês de internação provisória, o adolescente
Gustavo* passou a cumprir liberdade assistida. Sobre o período na Fundação
Casa, o jovem, hoje com 17 anos, lembra da relação difícil com os funcionários
da instituição. “Eles não passam confiança. Passam medo”, lembra. “Se você não
faz o que eles mandam, eles dão tapa na cabeça. Dão chutes”, conta.
O receio também vinha das incertezas do jovem sobre os
desdobramentos do processo por roubo. “Eu não sabia se ia ficar fichado. Não
sabia o que ia acontecer. Eu tinha esse medo de não poder arrumar emprego, não
poder ter cargo público”, acrescenta.
Hoje, Gustavo avalia que a experiência acabou tendo
pontos positivos, principalmente a participação em atividades culturais e rodas
de conversa – que faziam parte das medidas socioeducativas cumpridas no período
de liberdade assistida no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e
Adolescente (Cedeca) em Sapopemba, zona leste paulistana.
Segundo ele, essas atividades acabaram despertando o seu
interesse pela política e pelo funcionamento institucional do país. “Tem uma
parte da sociedade que tem todos os seus direitos. Já tem uma que tem os seus
direitos negados. Principalmente os adolescentes que estão dentro da fundação,
esses não têm direito nenhum. Mal sabem dos seus direitos”, analisa o jovem
que, além de estudar para concursos públicos, pretende cursar dois cursos
universitários: psicologia e ciências sociais. “A Fuvest [vestibular da
Universidade de São Paulo] não é um bicho de sete cabeças”, conclui otimista.
Sobre as denúncias de supostos desrespeitos aos jovens, a
Fundação Casa, por meio de sua assessoria, disse que leva em consideração os
direitos humanos dos adolescentes e não tolera qualquer tipo de prática de
violência nos centros socioeducativos. “A instituição pauta seu atendimento
pelas diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), com respeito à
integridade física e psicológica dos jovens”, disse em nota.
A instituição destacou ainda que aplica sanções
administrativas, por meio da corregedoria-geral, aos funcionários que
participam de episódios identificados de violência. Essas medidas podem ir de
suspensão à demissão por justa causa.