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david robson
O caso deixou boquiabertos
todos os envolvidos: uma mulher de 74 anos começou a apresentar uma irritação
na pele que não melhorava. Quando finalmente procurou um hospital, parte de sua
perna direita estava coberta de nódulos. Os testes confirmaram que se tratava
de um carcinoma, um tipo de câncer de pele.
Por causa da maneira como os tumores estavam espalhados,
a radioterapia não seria eficiente. E os médicos não poderiam removê-los. Alan
Irvine, oncologista responsável pelo tratamento da paciente no Hospital St.
James, em Dublin, na Irlanda, lembra que a amputação parecia ser a única opção
viável, mas por causa da idade da paciente, seria difícil que ela se adaptasse
bem a uma prótese.
"Decidimos simplesmente esperar e pensar em outras
possibilidades, mesmo sabendo que haveria muito sofrimento pela frente",
conta.
Foi aí que o "milagre" começou: apesar de não
terem sido tratados, os tumores diminuíram e murcharam até desaparecerem
completamente. Depois de 20 semanas, a paciente estava curada. "Não
tínhamos dúvida alguma de que o diagnóstico estava correto, mas depois disso
nada aparecia nas biópsias ou nos exames de imagem", diz o médico. "O
caso mostra que é possível para o corpo combater o câncer, mesmo que isso seja
incrivelmente raro."
A questão é: como? A paciente de Irvine acredita ter sido
a "mão de Deus". Mas cientistas estão estudando a biologia por trás
da chamada "regressão espontânea" para buscar pistas que possam fazer
casos de autocura algo mais comum.
Recuperada pela gravidez
Em tese, nosso sistema imunológico deveria perseguir e
destruir células que sofrem mutações antes que elas comecem a evoluir para um
câncer. Mas às vezes essas células conseguem passar despercebidas,
reproduzindo-se até formarem um tumor.
Até o câncer ser detectado pelos médicos, é altamente
improvável que o paciente consiga se recuperar sozinho: acredita-se que apenas
um em cada 100 mil pacientes pode se livrar da doença sem receber tratamento.
Mas entre esses raríssimos casos há algumas histórias
realmente inacreditáveis. Um hospital da Grã-Bretanha, por exemplo,
recentemente tornou público o caso de uma paciente que descobriu um tumor entre
o reto e o útero pouco antes de saber que estava grávida. A gestação correu bem
e o bebê nasceu saudável. Quando ela se encaminhava para o doloroso tratamento
para o câncer, seus médicos notaram, com muito espanto, que o tumor desapareceu
misteriosamente durante a gravidez. Nove anos depois, a mulher não apresenta
nenhum sinal de recaída.
Casos semelhantes de recuperação extraordinária foram
observados em muitos tipos de câncer, inclusive em formas mais agressivas como
a leucemia mieloide aguda, que provoca o crescimento anormal dos glóbulos
brancos do sangue.
"Um paciente que não receba tratamento pode morrer
em poucas semanas ou até em uma questão de dias", conta Armin Rashidi, da
Universidade Washington, em St. Louis. Ele, no entanto, encontrou 46 casos em
que essa doença regrediu sozinha. "É possível que 99% dos oncologistas
digam que isso é impossível de acontecer", afirma Rashidi, que escreveu um
artigo sobre o assunto com o colega Stephen Fisher.
Leia
mais: Como a Evolução explica o seu cansaço
Por outro lado, é surpreendentemente comum ver crianças
se recuperando do neuroblastoma, um tipo de câncer infantil, oferecendo algumas
das melhores pistas sobre o que pode acarretar a regressão espontânea.
Esse tipo de câncer surge com tumores no sistema nervoso
e nas glândulas. Se ele se espalhar, pode levar ao aparecimento de nódulos na
pele e pólipos no fígado, e o inchaço do abdômen dificulta a respiração.
Trata-se de uma doença muito desgastante, mas ela pode
desaparecer tão rapidamente como surgiu, mesmo sem intervenção médica. Na
realidade, para bebês com menos de 1 ano, a regressão é tão comum que muitos
médicos evitam realizar a quimioterapia imediatamente, na esperança de que os
tumores diminuam por conta própria.
"Cuidei de três casos com metástases
impressionantes, mas apenas observamos os pacientes e eles se
recuperaram", lembra Garrett Brodeur, do Hospital Infantil da Filadélfia.
Para
evitar o sofrimento dessa espera, Brodeur está buscando entender os mecanismos
por trás do desaparecimento de um câncer. "Queremos desenvolver agentes
específicos que possam iniciar a regressão para não termos que esperar que a natureza
tome seu rumo ou que 'Deus' decida", afirma o médico.
Até agora, Brodeur conseguiu boas evidências. Uma delas é
de que as células em tumores de neuroblastoma parecem ter desenvolvido a
capacidade de sobreviver sem o fator de crescimento nervoso (NFG, na sigla em
inglês), o que permite que elas se reproduzam bem em locais do corpo onde não
há o NFG.
A remissão espontânea pode ser provocada por uma mudança
natural nas células tumorais, talvez envolvendo os receptores que se ligam ao
NFG. Isso pode fazer com que as células percam esse nutriente essencial e não
consigam sobreviver.
Se isso for verdade, um medicamento que consiga atuar
nesses receptores seria capaz de iniciar a recuperação em outros pacientes, sem
os indesejáveis efeitos colaterais provocados por tratamentos mais tradicionais
para o câncer.
O poder da infecção
Infelizmente, recuperações inesperadas de outros tipos de
câncer foram menos estudadas. Mas algumas evidências conhecidas hoje foram
descobertas há mais de 100 anos por um médico americano pouco conhecido.
No século 19, William Bradley Coley se surpreendeu quando
um paciente que tinha um enorme tumor no pescoço se curou completamente quando
pegou uma infecção na pele e teve febre alta.
Coley testou o princípio em alguns outros pacientes e
descobriu que, ao infectá-los deliberadamente com bactérias, ou tratando-os com
toxinas segregadas por micróbios, tumores impossíveis de serem retirados
cirurgicamente foram destruídos.
Será que uma infecção seria uma maneira de estimular a
remissão espontânea? Análises recentes dão apoio à ideia. O estudo de Rashidi e
Fisher descobriu que 90% dos pacientes que se recuperaram de leucemia tinham
sofrido alguma outra doença, como pneumonia, antes do desaparecimento do
câncer.
Outros artigos mostraram que tumores sumiram depois de
casos de difteria, gonorreia, hepatite, gripe, malária, sarampo e sífilis.
Mas não são os germes sozinhos que provocam a cura: a
infecção é quem provoca uma resposta imunológica que torna o ambiente inóspito
para o tumor. O aquecimento provocado pela febre, por exemplo, pode tornar as
células cancerígenas mais vulneráveis ou até fazer com que elas "se
suicidem".
Ou talvez seja importante o fato de que quando estamos
lutando contra uma bactéria ou um vírus, nosso sangue está saturado de
moléculas inflamatórias que agem como uma "convocatória" para os
macrófagos do organismo, transformando essas células imunes em guerreiros que
matam e engolem micróbios – e potencialmente o câncer.
Ao mesmo tempo, essas células podem estimular outras do
sistema imunológico a reconhecerem as células cancerígenas, e assim atacá-las
caso o câncer volte.