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flávia
nogueira
A vergonha e o sentimento de
culpa evitam que eles falem a respeito do assunto. No entanto, alguns já
admitem o problema.
"Ela me agrediu. Minha filha me jogou
no chão, não podia respirar e (ela) quebrou o dedo da avó que tentou me
ajudar", disse à BBC Mundo Mariángeles (nome fictício), uma mãe de 42 anos
que mora em Madri, na Espanha.
Psicólogos e sociólogos analisam o
fenômeno, que não é novo, mas aumentou nas últimas décadas.
É uma forma de violência dentro das
famílias na qual os filhos abusam verbal, emocional, econômica e fisicamente
dos pais ou tutores para assumir o controle.
Segundo um estudo feito recentemente pela
União Europeia, estima-se que nos Estados Unidos e na Espanha - dois países
observados pela pesquisa - 10% das famílias sofrem com este tipo de agressão,
que não diferencia nível socioeconômico e muito menos modelo familiar. Os
principais agressores, no entanto, costumam ser os adolescentes e as vítimas,
as mães.
"(Muitos) pensam que acontece em
famílias desestruturadas, com problemas econômicos, mas não é assim. Há muita
variedade e (acontece em) muitas (famílias que) têm uma posição mais
cômoda", disse à BBC Mundo a psicóloga Esther Roperti.
No Brasil, os números da violência de
filhos contra pais também são relevantes, de acordo com dados compilados pelo
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da
Saúde, feito a partir dos registros catalogados por profissionais em postos de
saúde da rede pública.
Diante de uma suspeita de caso de violência
doméstica, sexual e/ou outras violências envolvendo crianças, adolescentes,
mulheres e idosos, o agente de saúde é obrigado a registrar oficialmente.
Em 2012, foram 4.289 casos registrados de
violência de filhos contra pais. Em 2013, 5.559 e, em 2014, 4.454 casos. Um
total de 14.302 agressões de filhos contra progenitores em apenas três anos.
De acordo com os dados, organizados e
analisados por Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da Área de Estudos da
Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), 70,4% das
vítimas da violência dos filhos foram as mães e 29%, os pais.
E o tipo de violência preponderante,
segundo estes dados, é a física. Mas também há incidência de "violência
psicológica ou moral e a negligência/abandono (...) provavelmente acompanhando
a violência física".
Apesar dos números altos e detalhados,
Waiselfisz afirma que esta pode ser apenas a "ponta do iceberg".
"Estes são os casos de violência
daquelas pessoas que já tiveram que ir ao posto de saúde. Ninguém vai ao posto
de saúde por causa de uma ameaça", afirmou.
Para Waiselfisz, estes casos relatados
talvez sejam apenas 80% dos casos de violência física que levam os pais a
procurar os serviços de saúde. Ele calcula que 20% destes casos extremos acabem
na rede de saúde particular, onde o registro não é obrigatório.
Leia mais: Crimes cometidos por jovens reacendem
debate sobre redução da maioridade penal
Outra limitação apontada por Waiselfisz é
que não existem dados a respeito dos filhos, apenas das vítimas da violência,
os pais.
A falta de precisão e até de registro deste
tipo de violência é uma situação que se repete em muitos países da América
Latina, onde não há diferenciação nas estatísticas entre os casos de violência
de filhos contra pais e outros casos de violência doméstica.
Na Argentina, por exemplo, "não
existem estatísticas, pois não está tipificado como delito e este tipo de
violência é englobada no nível geral, como violência familiar", afirmou à
BBC Mundo Gabriel Bertino, advogado e participante do Congresso Internacional
de Violência Filho-Paternal e Violência de Gênero, realizado em 2013 no país.
Por outro lado, na Colômbia, a agressão de
filhos contra pais representou 11% dos 15.829 casos de violência dentro da
família registrados em 2013.
O Ministério Público da Espanha afirma que,
junto com roubos violentos, a violência de filhos contra os pais é o crime que
mais leva a detenções e medidas cautelares contra menores de idade naquele
país. Em 2013 ocorreram 4.659 denúncias.
A Europa realizou em 2013 o primeiro estudo
sobre o problema, o relatório Abuso Oculto dos Filhos contra os Pais,
elaborado pela Universidade de Brighton, na Grã-Bretanha, e financiado pelo
Programa Daphne III, que combate a violência que envolve menores de idade.
"É a forma mais escondida,
incompreendida e estigmatizada de violência familiar. Milhares de pais vivem
com medo, mas ainda é um tema tabu", disse Paula Wilcox, pesquisadora que
participou do estudo.
O estudo acadêmico avaliou a eficácia dos
modelos para tratar a violência dos filhos contra os pais na Bulgária, Irlanda,
Espanha, Suécia e Inglaterra. Um dos modelos trabalha com grupos paralelos de
pais e jovens, ensinando técnicas para lidar melhor com as emoções, enquanto
outro modelo se concentra diretamente em como melhorar a vida dos pais.
"Não quer dizer que (a violência de
filhos contra pais) não existia, mas só agora alcança uma grande dimensão, que
chama atenção", disse à BBC Mundo Roberto Pereira, vice-presidente da
Sociedade Espanhola para Estudo da Violência Filho-Paternal (Sevifip), pioneira
no setor.
Drogas
No caso de Mariángeles - citada no início
da reportagem - a violência começou a se manifestar depois do divórcio, há seis
anos, e piorou depois que ela se mudou para Madri com as duas filhas. A mais
velha, que pediu para ser identificada com o nome fictício de Lucía, foi a que
passou por mudanças mais difíceis e reconhece que se afastou da mãe.
Aos 17 anos a jovem começou a usar drogas e
foi expulsa do colégio onde estudava. Os professores e orientadores do colégio
até sugeriram que a mãe a denunciasse à polícia, mas Mariángeles preferiu
procurar ajuda.
A mãe afirma que seu erro foi não conversar
com as filhas sobre as mudanças que viriam e também não impor limites.
Para especialistas, parte do problema é que
que as famílias não têm claro o conceito de autoridade e o sistema educativo é
permissivo. São mais amigos do que pais e criam "adolescentes caprichosos
que não toleram a frustração", diz a psicóloga Esther Roperti.
"A falta de limites gera angústia e
ansiedade, é como atravessar uma rua sem semáforo", afirmou a psicóloga.
Segredo e
denúncia
Muitos pais acreditam que seja uma fase
passageira, e que seus filhos os agridem porque é apenas um aspecto da
personalidade dos jovens.
Mas especialistas afirmam que, em muitos
casos, a violência é indicador de uma necessidade de limites ou de uma
separação indispensável para que o filho possa se desenvolver como indivíduo.
Por isto este comportamento ocorre mais na adolescência.
Muitas vezes, a necessidade de intervenção
deve se materializar na forma de uma denúncia para as autoridades. Uma medida -
segundo os terapeutas - que protege os pais e pode ajudar para que estes filhos
possam se relacionar sem violência.
Mas, tomar a decisão e fazer a denúncia
também não é fácil devido às consequências legais envolvidas.
A advogada María José Parras afirma que, às
vezes, é um vizinho que chama a polícia e começa todo o processo até o
julgamento.
"É importante assessorar bem os pais,
porque denunciar também implica uma ordem de restrição. O filho não pode se
aproximar da residência nem falar com os pais, se não cumprir a ordem, será um
delito", afirmou.
A denúncia pode levar os jovens a centros
de menores.
Mesmo assim, Mariángeles afirma que é
preciso denunciar, "para ajudar outras famílias". "Tenham muita
paciência e não percam a esperança", acrescentou.
Lucía, a filha de Mariángeles, passou três
meses em liberdade vigiada e quase um ano em um centro de menores.
"Me impactou ver casos mais fortes.
Abri os olhos e valorizei mais minha mãe", disse.