16/11/2025 18:54:10

Especial
16/11/2025 16:00:00

Brasil à deriva: risco de se transformar em um Estado dominado pelo crime organizado

Análise de especialistas revela que o país enfrenta crescimento das facções criminosas e infiltrações na política

Brasil à deriva: risco de se transformar em um Estado dominado pelo crime organizado

O ano de 2025 tem apresentado uma série de eventos que reforçam a hipótese de que o poder e a influência do crime organizado no Brasil vêm crescendo de forma alarmante.

Entre os acontecimentos que marcaram esse período estão o assassinato de um ex-delegado em São Paulo, a morte de um delator do PCC por policiais militares no aeroporto de Guarulhos, a ampliação dos negócios do grupo paulista em fintechs na Avenida Faria Lima, bem como o deslocamento forçado de moradores de um vilarejo no Ceará devido a uma batalha entre facções rivais.

Além disso, há relatos de intercâmbio de criminosos de diferentes regiões do país nos complexos da Penha e do Alemão, episódios que culminaram na operação policial mais letal da história brasileira. Tais ocorrências têm levado uma parcela da população a questionar se o Brasil estaria caminhando para um cenário de narcoestado.

O termo, cada vez mais presente em postagens nas redes sociais, na fala de analistas e de algumas autoridades, tem gerado debates sobre sua validade e aplicabilidade.

Para investigar a questão, a BBC News Brasil consultou sete estudiosos de sociologia e segurança pública. Como esperado, as opiniões não são unânimes, e a complexidade do tema impede uma resposta definitiva.

De modo geral, os especialistas afirmam que não é possível classificar o Brasil como um narcoestado, pois o conceito não condiz com a realidade do país atualmente. A definição, que carece de um enquadramento científico exato, diz respeito a uma nação em que o crime assume o controle do Estado e passa a operar na lógica do comércio de drogas, algo que não ocorre no Brasil, nem na maioria dos demais países, ressaltam.

Benjamin Lessing, pesquisador norte-americano com mais de dez anos de estudo sobre organizações ilícitas na América Latina, considera o termo um pouco exagerado. Ele explica que, se o Estado estivesse completamente envolvido no tráfico de drogas, não poderia ser considerado um Estado.

Para Lessing, a Venezuela seria a nação mais próxima desse conceito, mas mesmo assim, apenas se as acusações de envolvimento de agentes estatais, como membros das Forças Armadas, com o tráfico de drogas, fossem comprovadas — o que ainda não ocorreu.

Outros exemplos históricos citados por Lessing incluem o Panamá de 1983 a 1989, sob o comando de Manuel Noriega, que tinha ligação direta com o tráfico, e o México dos anos 70 e 80, controlado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que, embora não gerenciasse o tráfico, regulava as rotas e os pontos de venda.

As fontes ouvidas destacam que a expressão 'narcoestado' é mais usada no debate midiático e político do que entre os acadêmicos que estudam organizações criminosas. Contudo, reconhecem que há um avanço preocupante das facções no país e que elas mantêm infiltrações na política.

Dados recentes reforçam essa percepção: a maioria dos brasileiros considera a violência o maior problema do país, segundo a última pesquisa Genial/Quaest, em que 30% dos entrevistados apontaram a insegurança, muito à frente de questões sociais (18%) e econômicas (16%).

Especialistas defendem que as facções mantêm uma relação ambígua com o Estado, muitas vezes parasitária ou até 'simbiótica', convivendo com o poder sem substituí-lo completamente. Segundo Gabriel Feltran, da Sciences Po, em Paris, essa coexistência ocorre por meio do compartilhamento de monopólio da violência e da influência na tomada de decisões.

O avanço territorial das organizações criminosas é um fenômeno que, para muitos pesquisadores, explica o crescimento de seu poder financeiro e influência social. As receitas do tráfico de cocaína, por exemplo, representam cerca de R$ 15 bilhões anuais, em um mercado avaliado em R$ 348 bilhões, conforme estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Após consolidar sua presença na venda de drogas nas décadas de 1990 e 2000, essas facções passaram a diversificar suas atividades, envolvendo crimes virtuais, furtos de celulares e lavagem de dinheiro em setores legítimos, movimentando R$ 186,6 bilhões por ano, além de operações ilegais de mineração, extração e transporte.

O crescimento das facções também se dá pela expansão do território, que ultrapassa fronteiras nacionais, com grupos como o PCC e o Comando Vermelho controlando regiões além de suas áreas originais. Segundo dados do Ministério da Justiça, em 2024, existem atualmente 88 organizações criminosas distribuídas pelo Brasil, muitas delas exercendo controle territorial, impondo regras e punindo quem desrespeita suas normas.

Dados do Datafolha indicam que cerca de 31 milhões de brasileiros vivem sob o controle de facções criminosas, uma elevação de cinco pontos percentuais em relação a 2024, o que demonstra a intensificação desse fenômeno. Entre esses, uma parte significativa reside na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, onde a influência das facções influencia diretamente a política local e até interesses eleitorais, articulando alianças e financiamento.

O avanço das organizações criminosas se relaciona à fragilidade do Estado em oferecer segurança, educação e infraestrutura aos seus cidadãos, deixando espaços que são ocupados por grupos ilegais que, muitas vezes, mantêm uma relação de cooptação com setores do poder político e policial.

Especialistas como Lessing alertam para a preocupação de que o Estado não prioriza ações efetivas para retomar o controle de territórios dominados por facções. A recente operação na Penha e no Alemão, que resultou na morte de 121 pessoas, exemplifica essa dificuldade de estabelecer o monopólio da violência, uma atribuição fundamental do Estado.

Lessing critica a ausência de uma política clara de reconquista desses espaços, destacando que nenhum setor político demonstra disposição para fortalecer a presença estatal de forma consistente.

Na avaliação de analistas, o uso de termos como 'narcoestado' ou 'narco-terrorista' é muitas vezes utilizado para fins políticos ou midiáticos, podendo distorcer a compreensão do problema e dificultar as soluções reais. Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, compara o conceito ao de 'terrorismo narcoterrorista', alertando sobre os riscos de transformar uma questão de segurança pública em uma ameaça à soberania nacional.

Para o especialista, rotular como guerra ou terrorismo um fenômeno que, na verdade, responde a dinâmicas criminosas, pode levar a intervenções militares desproporcionais e prejudiciais à democracia.

O professor João Paulo Charleaux também critica o uso inadequado de termos e destaca que, muitas vezes, campanhas retóricas reforçam uma narrativa de conflito que não condiz com a realidade, promovendo uma liberdade de ação para as forças policiais que não deveria existir.

Por fim, os estudiosos concordam que o crescimento do crime organizado demanda maior atenção do Estado, mas alertam para o risco de que o uso de expressões alarmistas, como 'narcoestado', sirva de instrumento para manipulação política e midiática, prejudicando o processo de enfrentamento à violência.