A América Latina é palco de um fenômeno contraditório: embora mantenha há mais de um século fronteiras estáveis e não registre guerras entre países, vive internamente uma intensa violência impulsionada pelo crime organizado e pelo narcotráfico. Essa combinação de paz entre Estados e violência interna reflete o desequilíbrio entre estabilidade geopolítica e fragilidade institucional no combate ao crime.
Segundo o cientista político argentino Andrés Malamud, a região não testemunha a criação ou dissolução de Estados desde 1903, com a independência do Panamá. Desde então, os 20 países latino-americanos continuam os mesmos na estrutura das Nações Unidas. Em contrapartida, a Europa, por exemplo, viu esse número triplicar no mesmo período. Essa continuidade territorial, conforme Malamud, demonstra uma paz formal, mas não uma ausência de conflitos. Ele resume: “Nos matamos de outras formas”, referindo-se à violência doméstica e à ação de grupos criminosos.
Manuel Camilo González, professor colombiano de Relações Internacionais, destaca que, ao contrário da Europa, a América Latina viveu poucas guerras entre nações, mas muitos conflitos internos, como guerras civis. Ele observa que, em vez de buscar expansão territorial, as elites da região priorizaram a pacificação interna, o que resultou em fronteiras fixas, mas em instabilidade social e criminal recorrente.
Esse cenário, segundo os especialistas, é agravado pela atuação segmentada dos Estados latino-americanos, que concentram seus esforços nas capitais e grandes centros urbanos, deixando municípios periféricos vulneráveis ao domínio de facções criminosas. Muitas vezes, esses grupos estão vinculados a lideranças políticas locais, o que dificulta o enfrentamento ao crime organizado.
Outro ponto crucial é a forma como a globalização favorece atores ilegais. González explica que a rigidez das fronteiras e o princípio da não intervenção entre países — tradicionalmente defendido na região — criaram um ambiente propício à expansão de redes criminosas transnacionais. Ele observa que, durante a pandemia, enquanto os Estados restringiram a circulação de pessoas, o crime organizado expandiu suas operações, ocupando espaços deixados pelo poder público.
Matías Alejandro Franchini, professor da Universidade del Rosario, na Colômbia, reforça esse paradoxo ao afirmar que, apesar de a América Latina resolver disputas entre países por meios diplomáticos e legais — como o caso entre Colômbia e Nicarágua levado à Corte Internacional de Justiça —, internamente a realidade é muito distinta. A região lidera rankings mundiais de homicídios, mesmo sem estar formalmente em guerra.
Essa postura pacífica entre os países da região é atribuída, por Franchini, ao apego histórico ao direito internacional como proteção frente às grandes potências globais, desde o fim do século XIX. Sem poder militar comparável, os países latino-americanos recorreram à legalidade como escudo contra intervenções externas.
O chamado “efeito balão” ajuda a entender a dinâmica do narcotráfico na região. Malamud compara: ao apertar um balão, o ar apenas se desloca. Da mesma forma, o combate ao tráfico em um país frequentemente resulta na migração das operações criminosas para o vizinho. O caso colombiano, que viu a redução da criminalidade coincidir com o aumento da violência no Equador, é exemplo dessa lógica.
Os dados mais recentes da organização Insight Crime revelam o tamanho da crise: Haiti (62), Equador (38,8), Venezuela (26,2), Colômbia (25,4), Honduras (25,3) e Brasil (21,1) figuram entre os países com as maiores taxas de homicídio por 100 mil habitantes. Mesmo países tradicionalmente mais estáveis, como Costa Rica e Uruguai, registram índices elevados para padrões globais. O levantamento alerta ainda para possíveis manipulações ou inconsistências nos dados de países como Bolívia, Chile, El Salvador, México e Venezuela.
Em resumo, a América Latina vive um paradoxo estrutural: mantém uma paz formal entre seus Estados, mas sofre com uma guerra interna contínua alimentada por estruturas criminosas que desafiam o controle institucional, aproveitam as falhas estatais e se fortalecem nos vazios deixados pelos governos.