Em meio ao fascínio global por ferramentas como o ChatGPT, consideradas por muitos como "mágicas" pela sua capacidade de responder com fluidez e precisão, a jornalista e engenheira Karen Hao revela, em seu livro Empire of AI, o custo humano, ambiental e social oculto por trás dessa tecnologia. A obra, lançada em maio de 2025, é resultado de três anos de investigação e mais de 300 entrevistas conduzidas em diversos países.
Segundo Hao, o sucesso da OpenAI, empresa responsável pelo ChatGPT, não se sustenta apenas sobre avanços tecnológicos, mas sobre estruturas que terceirizam responsabilidades e exploram trabalhadores em contextos de desigualdade extrema. “Essas empresas enriquecem mais quando a IA parece mágica, mas não é tão emocionante quando os consumidores descobrem a exploração envolvida”, afirma ela.
O trabalho humano que alimenta a IA
Hao relata casos como o do queniano Mophat Okinyi, que atuou como moderador de conteúdo para treinar os filtros do ChatGPT. Exposto diariamente a textos envolvendo abusos e violência sexual, Okinyi desenvolveu traumas psicológicos e perdeu seu relacionamento familiar. Sua tarefa consistia em identificar e classificar conteúdos gerados artificialmente, como erotismo, assédio e pedofilia, para permitir que o sistema identificasse o que deveria ser barrado.
Esse tipo de trabalho, considerado por muitos como “microtarefas”, é comumente terceirizado para países do Sul Global, onde trabalhadores com ensino superior, boa conexão à internet e baixa renda aceitam funções mal remuneradas e emocionalmente desgastantes. No Brasil, por exemplo, uma pesquisa da Universidade Estadual de Minas Gerais revelou que 63% desses trabalhadores são mulheres.
A estrutura oculta: terceirizações e sigilo
A OpenAI não contrata diretamente esses profissionais, mas opera através de intermediários, como empresas terceirizadas de tecnologia. Isso dificulta o rastreio das condições de trabalho e exime formalmente a companhia de responsabilidade legal direta. Karen Hao afirma que mesmo quando escândalos são revelados, as empresas alegam que “não foi com elas”, distanciando-se das consequências humanas de suas operações.
A autora também aponta a mudança de perfil da OpenAI desde sua fundação. Criada em 2015 como um laboratório sem fins lucrativos com o objetivo de desenvolver uma Inteligência Artificial Geral (AGI) para o bem da humanidade, a organização se transformou rapidamente após receber um bilionário investimento da Microsoft. A partir daí, cresceu o foco em produtos comerciais e a busca por retorno financeiro, mantendo uma cultura de sigilo e marketing em torno da “magia” da IA.
Os impactos ambientais dos data centers
Além da exploração humana, o desenvolvimento de ferramentas de IA depende de infraestrutura gigantesca, como os data centers. Esses centros de processamento, muitos localizados em áreas rurais ou periféricas, consomem quantidades colossais de água e energia. O treinamento do GPT-4, por exemplo, exigiu energia equivalente ao consumo de mais de 70 mil residências de países em desenvolvimento.
A extração desses recursos gerou protestos, como o caso emblemático no Chile, onde ativistas conseguiram barrar a construção de um data center do Google em Cerrillos, que usaria 169 litros de água potável por segundo — mais de mil vezes o consumo da população local. A mobilização forçou a empresa a rever seus planos e iniciar uma mesa de diálogo entre governo, empresas e comunidade.
Colonialismo digital e dependência tecnológica
Karen Hao destaca que muitos países, sobretudo do Sul Global, encaram a chegada dessas empresas como uma oportunidade de investimento. Contudo, essa expectativa muitas vezes mascara relações de dependência e neocolonialismo, em que governos cedem recursos como água, energia e território para manter empresas tecnológicas operando em seus países, mesmo sem garantias de benefício social.
No Brasil, por exemplo, o governo anunciou o programa Redata, voltado para a atração de data centers com incentivos fiscais, alegando o objetivo de fortalecer a soberania digital e reduzir a dependência do processamento de dados no exterior. O Ministério da Fazenda afirma que haverá exigências ambientais e sustentáveis para as empresas que aderirem.
IA como escolha, não inevitabilidade
Para Karen Hao, o avanço da IA generativa não é um caminho inescapável, mas fruto de decisões humanas e políticas. Ela defende que os usuários e governos têm papel ativo em moldar o futuro dessas tecnologias e devem questionar os modelos de negócios que ignoram direitos humanos e ambientais.
Ela lembra que há alternativas mais éticas, como modelos de código aberto e regulamentações públicas que garantam o bem-estar coletivo. “A narrativa de que a IA é inevitável favorece as empresas que querem expandir seu poder sem barreiras. Precisamos lembrar que elas ainda dependem dos nossos dados, terras e recursos para operar. Isso nos dá poder para exigir contrapartidas”, conclui.
Empire of AI, ainda sem edição brasileira, é um alerta sobre as estruturas invisíveis que sustentam a tecnologia atual e um convite à reflexão sobre os rumos que a inteligência artificial deve tomar.