El País - Artistas e
feministas fomentam
a pedofilia. O ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso e o
bilionário norte-americano George Soros patrocinam o comunismo. As escolas
públicas, a universidade e a maioria dos meios de comunicação estão dominados
por uma “patrulha ideológica” de inspiração bolivariana. Até o nazismo foi
invenção da esquerda. Bem-vindos ao
Brasil, segunda década do século XXI, um país onde um candidato
a presidente que faz com que Donald Trump até pareça moderado tem
20% das intenções de voto.
No Brasil de hoje
mensagens assim martelam diariamente as redes sociais e mobilizam exaltados
como os que tentaram agredir em São Paulo a filósofa feminista Judith Butler, ao grito
de “queimem a bruxa”. Neste país
sacudido pela corrupção e a crise
política, que começa a sair da
depressão econômica, é perfeitamente
possível que a
polícia se apresente em um museu para apreender uma obra. Ou que o curador de uma exposição espere a chegada da PF
para conduzi-lo a depor forçado ante uma comissão parlamentar que investiga os
maus-tratos à infância.
“Isto era impensável até três anos atrás. Nem na ditadura
aconteceu isto.” Depois de uma vida dedicada a organizar exposições artísticas, Gaudêncio Fidelis,
de 53 anos, se viu estigmatizado quase como um delinquente. Seu crime foi
organizar em Porto Alegre a exposição QueerMuseu, na
qual artistas conhecidos apresentaram obras que convidavam à reflexão sobre o
sexo. Nas redes sociais se organizou tal alvoroço durante dias, com o argumento
de que era uma apologia à pedofilia e à zoofilia, que o patrocinador, o Banco
Santander, ante a ameaça de um boicote de clientes, decidiu fechá-la.
“Não conheço outro caso no mundo de uma exposição destas dimensões que tenha
sido encerrada”, diz Fidelis.
O
calvário do curador da QueerMuseu não
terminou com a suspensão da mostra. O senador Magno Malta (PR-ES), pastor
evangélico conhecido por suas reações espalhafatosas e
posições extremistas, decidiu convocá-lo para depor na CPI que
investiga os abusos contra criança. Gaudêncio se recusou em um primeiro momento
e entrou com um pedido de habeas corpus no STF que foi parcialmente deferido.
Magno Malta emitiu então à Polícia Federal um mandado de coerção coercitiva do
curador. Gaudêncio se mostrou disposto a comparecer, embora entendesse que,
mais que como testemunha, pretendiam levá-lo ao Senado como investigado. Ao
mesmo tempo, entrou com um novo pedido de habeas corpus no Supremo para frear o
mandado de coerção coercitiva. A solicitação foi indeferida na sexta-feira
passada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Portanto, a qualquer momento Gaudêncio espera a chegada da PF para levá-lo à
força para Brasília.
“O
senador Magno Malta recorre a expedientes típicos de terrorismo de Estado como
meio de continuar criminalizando a produção artística e os artistas”, denuncia
o curador. Ele também tem palavras muito duras para Alexandre de Moraes, até há
alguns meses ministro da Justiça do Governo Michel Temer, por lhe negar o
último pedido de habeas corpus: “A decisão do ministro consolida mais um ato
autoritário de um estado de exceção que estamos vivendo e deve ser vista como
um sinal de extrema gravidade”. Fidelis lembra que o próprio Ministério Público
de Porto Alegre certificou que a exposição não continha nenhum elemento que
incitasse à pedofilia e que até recomendou sua reabertura.
Entre
as pessoas chamadas à CPI do Senado também estão o diretor do Museu de Arte
Moderna de São Paulo e o artista que protagonizou ali uma performance em que
aparecia nu. Foi dias depois do fechamento do QueerMuseu e
os grupos ultraconservadores voltaram a organizar um escândalo nas redes,
difundindo as imagens de uma menina,
que estava entre o público com sua mãe e que tocou no pé do artista. “Pedofilia”,
bramaram de novo. O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito e o
próprio prefeito da cidade, João Doria (PSDB),
se uniu às vozes escandalizadas.
Se
não há nenhum fato da atualidade que justifique esse tipo de campanha, os
guardiões da moral remontam a muitos anos atrás. Assim aconteceu com Caetano Veloso, de quem se
desenterrou um velho episódio para recordar que havia começado um
relacionamento com a que depois foi sua esposa, Paula Lavigne, quando ela ainda
era menor de idade. “#CaetanoPedofilo” se tornou trending topic. Mas neste caso
a Justiça amparou o músico baiano e ordenou que parassem com os ataques.
A
atividade de grupos radicais evangélicos e de sua poderosa bancada
parlamentar (198 deputados e 4 senadores, segundo o registro do
próprio Congresso) para desencadear esse tipo de campanha já vem de muito
tempo. São provavelmente os mesmos que fizeram pichações recentes no Rio de
Janeiro com o slogan “Bíblia sim, Constituição, não”. Mas o verdadeiramente
novo é o aparecimento de um “conservadorismo laico”, como o define Pablo
Ortellado, filósofo e professor de Gestão de Políticas Públicas da USP. Porque
os principais instigadores da campanha contra o Queermuseu não
tinham nada a ver com a religião. O protagonismo, como em muitos outros casos,
foi assumido por aquele grupo na faixa dos 20 anos que há um ano, durante as
maciças mobilizações para pedir a destituição da
presidenta Dilma Rousseff, conseguiu deslumbrar boa parte do
país.
Com sua desenvoltura juvenil e
seu ar pop, os rapazes do Movimento Brasil Livre(MBL)
pareciam representar a cara de um país novo que rejeitava a corrupção e
defendia o liberalismo econômico. Da noite para o dia se transformaram em
figuras nacionais. Em pouco mais de um ano seu rosto mudou por
completo. O que se apresentava como um movimento de regeneração
democrática é agora um potente maquinário que explora sua habilidade nas redes
para difundir campanhas contra artistas, hostilizar jornalistas e professores
apontados como de extrema esquerda ou defender a venda de armas. No intervalo
de poucos dias o MBL busca um alvo novo e o repisa sem parar. O mais recente é
o jornalista Guga Chacra, da TV Globo, agora também classificada de
"extrema esquerda". O repórter é vítima de uma campanha por
se atrever a desqualificar -em termos muito parecidos aos empregados pela
maioria dos meios de comunicação de todo o mundo-, 20.000 ultradireitistas
poloneses que há alguns dias se manifestaram na capital do pais
exigindo uma “Europa branca e católica”.
Além
de sua milícia de internautas, o MBL conta com alguns apoios de renome. Na
política, os prefeitos de São Paulo, João Doria, e de Porto Alegre, Nelson
Marchezan Jr., assim como o até há pouco ministro das Cidades, Bruno Araújo, os
três do PSDB. No âmbito intelectual, filósofos que se consideram liberais, como
Luiz Felipe Pondé. Entre os empresários, o dono da Riachuelo, Flávio Rocha, que
se somou aos ataques contra os artistas com um artigo na Folha de S. Paulo no
qual afirmava que esse tipo de exposição faz parte de um “plano urdido nas
esferas mais sofisticadas do esquerdismo”. O objetivo seria conquistar a
“hegemonia cultural como meio de chegar ao comunismo”, uma estratégia diante da
qual “Lenin e companhia parecem um tanto ingênuos”, segundo escreveu Rocha em
um artigo intitulado O comunista está nu.
“Não
é algo específico do Brasil”, observa o professor Pablo Ortellado. “Este tipo
de guerras culturais está ocorrendo em todo o mundo, sobretudo nos EUA, embora
aqui tenha cores próprias”. Um desses elementos peculiares é que parte desses
grupos, como o MBL, se alimentou das mobilizações pelo impeachment e agora
“aproveita os canais de comunicação então criados, sobretudo no Facebook”,
explica Ortellado. “A mobilização pelo impeachment foi transversal à sociedade
brasileira, só a esquerda ficou à margem. Mas agora, surfando nessa onda,
criou-se um novo movimento conservador com um discurso antiestablishment e
muito oportunista, porque nem eles mesmos acreditam em muitas das coisas que
dizem”. A pauta inicial, a luta contra a corrupção, foi abandonada “tendo em
vista de que o atual governo é tão ou mais corrupto que o anterior”. Então se
buscaram temas novos, desde a condenação do Estatuto do Desarmamento às
campanhas morais, que estavam completamente ausentes no início de grupos como o
MBL e que estão criando um clima envenenado no país. “É extremamente
preocupante. Tenho 43 anos e nunca tinha vivido uma coisa assim”, confessa
Ortellado. “Nem sequer no final da ditadura se produziu algo parecido. Naquele
momento, o povo brasileiro estava unido.”
O
estranho é que a intensidade desses escândalos está oferecendo uma imagem
enganosa do que na realidade pensa o conjunto dos brasileiros. Porque, apesar
desse ruído ensurdecedor, as pesquisas desmentem a impressão de que o país
tenha sucumbido a uma onda de ultraconservadorismo. Um estudo do instituto
Ideia Big Data, encomendado pelo Movimento Agora! e publicado pelo jornal Valor Econômico,
revela que a maioria dos brasileiros, em cifras acima dos 60%, defendem os
direitos humanos, inclusive para bandidos, o casamento gay com opção de
adotar crianças e o aborto. “Em questões comportamentais, nada indica que os
brasileiros tenham se tornado mais conservadores”, reafirma Mauro Paulino,
diretor do Datafolha. Os
dados de seu instituto também são claros: os brasileiros que apoiam os direitos
dos gays cresceram nos últimos quatro anos de 67% para 74%. Paulino explica que
“sempre houve um setor da classe média em posições conservadoras” e que agora
“se tornou mais barulhento”.
As
investigações do Datafolha só detectaram um deslocamento para posições mais
conservadoras em um aspecto: segurança. “Aí sim há uma tendência que se
alimenta do medo crescente que se instalou em parte da sociedade”, afirma
Paulino. Aos quase 60.000 assassinatos ao ano se somam 60% de pessoas que
confessam viver em um território sob controle de alguma facção criminosa. Em
quatro anos, os que defendem o direito à posse de armas cresceu de forma
notória, de 30% a 43%. É esse medo o que impulsiona o sucesso de um candidato
extremista como Jair Bolsonaro, que promete pulso firme sem contemplações
contra a delinquência.
Causou
muito impacto a revelação de que 60% dos potenciais
eleitores de Bolsonaro têm menos de 34 anos, segundo os estudos do
instituto de opinião. Apesar de que esse dado também deve ser ponderado: nessa
mesma faixa etária, Lula continua
sendo o preferido, inclusive com uma porcentagem maior (39%) do que a média da
população (35%). “Os jovens de classe média apoiam Bolsonaro, e os pobres,
Lula”, conclui Paulino. Diante da imagem de um país muito ideologizado, a
maioria dos eleitores se move na verdade “pelo pragmatismo, seja apoiando os
que lhe prometem segurança ou em alguém no que acreditam que lhes vai garantir
que não perderão direitos sociais”.
Apesar
de tudo, a ofensiva ultraconservadora está conseguindo mudar o clima do país e
alguns setores se dizem intimidados. “O profundo avanço do fundamentalismo está
criando um Brasil completamente diferente”, afirma Gaudêncio Fidelis. “Muita
gente está assustada e impressionada.” Um clima muito carregado no qual, em um
ano, os brasileiros deverão escolher novo presidente. O professor Ortellado
teme que tudo piore “com uma campanha violenta em um país superpolarizado”.