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Especial
10/05/2020 20:00:00

E depois da pandemia? O que esperar do mundo pós-coronavírus


E depois da pandemia? O que esperar do mundo pós-coronavírus

Por Nathan Fernandes

“Ou vocês fazem o que ela falou, ou eu vou cagar na comida de vocês todo dia.” É assim que um dos personagens do filme espanhol “O Poço” consegue iniciar uma campanha de bem-estar coletivo.

A história do longa, que figurou entre os mais vistos da Netflix brasileira, mostra uma prisão vertical na qual a comida é distribuída de cima para baixo. Os presos que estão mais abaixo comem os restos dos de cima — quando há restos, já que todos consomem o quanto querem, num determinado tempo. Em um momento, uma das personagens tenta conscientizar os colegas de baixo da importância de comer só o necessário para que, assim, a comida chegue nos andares inferiores. Os presos, no entanto, parecem mais interessados em engolir tudo o que as mãos alcançam. Cansado de observar a campanha frustrada da mulher, seu colega de cela dispara a ameaça escatológica acima, que parece ter mais efeito do que os apelos ao coração. 

Apesar (ou por causa) do final aberto e das simbologias nada sutis, o filme agradou grande parte do público. Principalmente, porque mostra nas telas uma reflexão sobre o paradoxo entre egoísmo e empatia, tão comum durante a pandemia do novo coronavírus. Mas não é na ideia de “solidariedade espontânea” que reside a maior metáfora do filme para o momento atual, e, sim, na ameaça mal cheirosa. 

Se ambientalistas, cientistas e organizações mundiais são a mulher que preza pelo bom senso, a Covid-19 é o personagem que apela para a violência fecal. Ou, como escreveu o filósofo francês Bruno Latour, em um texto publicado no Brasil pela n-1 edições, “a primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos dizia ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível da ‘locomotiva do progresso’, que nada era capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, ‘da globalização’”.

No e-book “O amanhã não está à venda” (Companhia das Letras), o escritor Ailton Krenak ilustra a mesma ideia com uma história. Quando engenheiros perguntaram a ele o que achava do uso da tecnologia para a recuperação do Rio Doce — a vítima mais silenciosa do rompimento da barragem de Mariana —, Krenak respondeu: “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a 100 quilômetros na margem direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Um dos engenheiros respondeu que isso seria impossível. Pouco tempo depois, com a ameaça do novo coronavírus, o engenheiro viu o impossível acontecer. 

O impossível virou real

No microssociedade infernal do filme “O Poço”, um dos personagens explica que lá só existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem. Se o longa espanhol é um reflexo das nossas próprias misérias, talvez este seja o momento de questionar essa hierarquia.

Ainda é cedo para especular sobre as mudanças trazidas pela desaceleração do mundo. Mas a crise parece ter ressaltado os problemas sociais que sempre existiram, como se o vírus tirasse o lençol que encobre o neoliberalismo, revelando as vergonhas de um sistema que se sustenta através de suas desigualdades. Na busca por um novo pano que nos aqueça, especialistas debatem sobre filosofias e conhecimentos tidos como marginalizados no mundo pré-crise, mas que ganham espaço diante de um impossível cada vez mais real. 

“Pensadores indígenas e quilombolas como Ailton Krenak e Antônio Bispo dos Santos têm teorias que ajudam muito a colocar sombras sobre o excesso de luminosidade iluminista do mundo ocidental”, afirma o doutor em filosofia Renato Noguera, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Como ele lembra, conhecimentos que não seguem o padrão europeu são frequentemente desprezados. “Ouvir esses outros pontos de vista não significa que eles tenham uma saída mágica. Mas, sim, reconhecer que, por demasiado tempo, estamos tentando abrir um cadeado com a mesma chave (a do projeto eurocêntrico), insistindo, sem checar, outras chaves que talvez possam abri-lo.” 

A escritora Helena Vieira, pesquisadora transfeminista da Teoria Queer, caracteriza o momento atual como um “acontecimento”, emprestando um conceito do filósofo francês Gilles Deleuze. “É aquilo que emerge no campo do real, abrindo novos possíveis. Nesse sentido, me parece que essa situação pode abrir outras possibilidades, outros arranjos de solidariedade e de funcionamento”, acredita. 

Novos hábitos sociais ainda causam estranheza, mas qual será o resultado final disso para a sociedade? (LILLIAN SUWANRUMPHA/AFP via Getty Images)
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Novos hábitos sociais ainda causam estranheza, mas qual será o resultado final disso para a sociedade? (LILLIAN SUWANRUMPHA/AFP via Getty Images)

Para a escritora, a pandemia expõem uma crise que já se observava dentro do modelo familiar. “A convivência forçada revela a profunda insustentabilidade de alguns laços mediados pela consanguinidade. O marido de uma família — que nós chamamos de tradicional —, por exemplo, tende a funcionar na medida em que está longe de casa, no trabalho... Esse convívio forçado, para muita pessoas, acaba trazendo o aumento da violência contra mulheres, idosos e LGBTs.”

Só no estado de São Paulo, o número de mulheres vítimas de violência doméstica aumentou 44,9% durante a quarentena, segundo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Temos um nítido acirramento da falência das formas heterocentradas de se relacionar fundadas pela consanguinidade. Ao mesmo tempo, outras formas de se relacionar parecem estar emergindo, através de pessoas que desenvolvem uma relação de irmandade ou parentalidade não mediada pelo sangue”, diz Vieira. 

A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e de Princeton, nos EUA, também chama atenção para a questão de gênero. “Temos que entender que nem sempre lar quer dizer casa. Muita vezes, romantizamos esse espaço, enquanto os números de violência doméstica aumentam”, diz. “Talvez, possamos aprender com a experiência das várias mulheres dirigentes de nações, como é o caso da Nova Zelândia, Islândia, Finlândia, Taiwan, Cingapura e Alemanha, que estão inventando uma forma nova de fazer política: menos viril, menos normativa, menos dogmática. Uma forma mais atenta aos cuidados que a população precisa. Talvez aí resida uma novidade.” 

Apesar de ocuparem apenas 7% dos cargos de liderança globais, segundo a ONU, países comandados por mulheres têm demonstrado mais eficiência em controlar a pandemia em seus territórios. É o caso da chanceler alemã Angela Merkel que, mesmo governando um dos países  mais afetado pela Covi-19, viu sua popularidade crescer ao apostar em ações pragmáticas, alinhadas com a ciência. 

Como lembra o professor Renato Noguera, o padrão eurocêntrico — que segue um modelo branco, heterossexual e masculino — privilegia um tipo de narcisismo suicida que reserva ao ser humano o sentimento de domínio sobre a natureza. “Num contexto euro-cristão dominante: conflito se transforma em confronto. Só pode existir um campeão. E esse vencedor vai fazer de tudo para se manter no topo, enquanto quem perdeu não descansará até conseguir sentir o sabor da vitória”, observa Noguera. “Economias políticas baseadas em conhecimentos como os do candomblé e os do xamanismo, por exemplo, desconhecem céu e inferno. Portanto, não há condenados. Ao se abrir a essas filosofias, a sociedade ganharia a oportunidade de perceber que a vida não é uma corrida frenética.”

Apesar de ocuparem apenas 7% dos cargos de liderança globais, segundo a ONU, países comandados por mulheres têm demonstrado mais eficiência em controlar a pandemia em seus territórios. É o caso da chanceler alemã Angela Merkel (HANNIBAL HANSCHKE/POOL/AFP via Getty Images)
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Apesar de ocuparem apenas 7% dos cargos de liderança globais, segundo a ONU, países comandados por mulheres têm demonstrado mais eficiência em controlar a pandemia em seus territórios. É o caso da chanceler alemã Angela Merkel (HANNIBAL HANSCHKE/POOL/AFP via Getty Images)

Assim insiste a humanidade

Pedro Rivero, um dos roteiristas de “O Poço”, lembra que, ao ver cenas de pessoas correndo para os supermercados para estocar mantimentos, é inevitável que surjam comparações com a história do longa espanhol. “As pessoas dizem: ‘Que coincidência esse filme sair bem no meio da crise de coronavírus’. Mas a única coisa que essa coincidência mostra é que a falta de solidariedade é algo que acontece sempre”, disse ele em entrevista ao canal espanhol Meteoro 115. 

Como brinca a historiadora Lilia Schwarcz, se a humanidade aprendesse com o passado, os historiadores seriam visionários. “Toda vez que passamos por uma grande crise, as pessoas acham que aprenderam alguma coisa. Ainda assim, vamos nos repetindo em termos de violência, intolerância, racismo, xenofobia. A humanidade é teimosa. Mas, já que é a primeira vez que essa geração vive algo do tipo, quem sabe algumas coisas não mudem?”

Para a líder zen-budista monja Cohen, a única certeza é que nada vai ser igual depois da crise. “É claro que vai haver uma mudança. A vida é mudança e transformação. Mas isso não garante que vamos aprender ética, que vamos nos tornar pessoas com maior qualidade de princípios. Se nos tornarmos, vai ser por quanto tempo?”, questiona ela, lembrando do 11 de setembro, data que supostamente mudou o mundo. 

A líder espiritual lembra que, na marcha da vida, o caminho é sempre para frente: “O planeta não deu uma paradinha para a gente voltar ao que era antes. Não tem um antes para voltar”. Segundo ela, repetir vícios como a ganância seria o pior dos erros. “Arriscar tudo para acumular poder é uma inversão de valores. Acontece quando, por exemplo, a primeira preocupação do presidente é com quem vai ser o ministro da fazenda, em vez de definir a educação e a saúde. A economia é o resultado de uma população saudável.” 

Não à toa a escritora Helena Vieira evoca a noção de “futurismo reprodutivo”, do pensador queer Lee Edelman, ao sugerir a recusa da noção de um futuro que pode ser controlado. “Acho que mais vale construir a crítica de qual encadeamento de atos trágicos nos trouxeram até aqui do que tentar adivinhar como vai ser o futuro”, afirma. 

Se não pode nos oferecer um serviço de vidente, o vírus, pelo menos, dá a possibilidade de olhar para o mundo de uma forma diferente, como lembra a monja Cohen. “É um momento de nos organizarmos internamente. Você é o administrador do seu corpo e da sua mente, é hora de administrá-los bem.” Para a monja, essa é a hora de apreciar o agora. “Não dá para pularmos para o futuro, então temos que atravessar essa pandemia enquanto ela nos atravessa.”

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