Pelo menos uma vez por mês, o Exército abastece com um carro-pipa algumas cisternas comunitárias espalhadas pelo município de 5,3 mil habitantes e, de lá, baldes e latas d'água completam o serviço.
Em 2003, um projeto capitaneado pelo governo do Estado prometia finalmente levar água para a cidade no semiárido paraibano. Mais de 15 anos depois, entretanto, ele praticamente não saiu do papel.
A obra é a mais antiga da lista de empreendimentos paralisados ou atrasados, financiados pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), hoje a principal fonte de recursos para financiar o saneamento no país.
O setor representa cerca de 5,5% do orçamento do fundo - que é alimentado pelos depósitos compulsórios do equivalente a 8% da remuneração de todos os trabalhadores com carteira assinada do país - e responde, no entanto, por 52,7% das obras paralisadas ou atrasadas bancadas com recursos do FGTS.
O relatório com dados de 2018 elenca 375 empreendimentos só na área de saneamento, em 25 Estados. Isso representa 22,7% do total de obras de saneamento atualmente na carteira do fundo, seja em fase de retorno (pagamento de prestações) ou de desembolso (construção).
Além de projetos que levariam água para o semiárido, também estão listadas uma série de obras de esgotamento sanitário - afinal, apenas 52,4% dos brasileiros têm acesso à rede de esgoto.
Entre elas, empreendimentos em parte da Região Metropolitana de São Paulo, com impacto sobre pelo menos 1,6 milhão de pessoas. Conduzidas pela companhia de saneamento paulista, a Sabesp, a maioria é de 2013.
No total, esses empreendimentos mobilizaram R$ 13 bilhões em empréstimos do fundo.
O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), aprovado em 2007, previa para 2033 a universalização dos serviços de água e esgoto. No ritmo atual de investimentos, entretanto, esse prazo foi esticado pelo menos para 2060, de acordo com Ilana Ferreira, especialista em infraestrutura da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Quanto maior for esse tempo, maiores os gastos evitáveis do país com Saúde, já que a falta de saneamento está diretamente ligada à incidência de uma série de doenças - como leptospirose, disenteria bacteriana, esquistossomose, febre tifóide, cólera -, e a perdas em produtividade do trabalho.
A BBC News Brasil conversou com representantes do setor público e privado e com especialistas na área para entender por que tantas cidades no Brasil ainda não têm água tratada ou esgoto. Abaixo, reunimos em quatro pontos os principais motivos citados.
O Brasil investe por ano muito menos do que seria preciso para atingir a meta de universalização do saneamento em 2033. A média entre 2009 e 2014 foi de R$ 9,4 bilhões, quando seriam necessários R$ 15,2 bilhões por ano, conforme os cálculos da CNI.
Ainda assim, na principal fonte de financiamento do setor - o FGTS - sobram recursos.
No início de 2018, o saneamento tinha R$ 6 bilhões disponíveis no orçamento do fundo. No fim do ano, esse número foi revisto e encolheu 33%, para R$ 4 bilhões. Ainda assim, do total, apenas 69,06% (R$ 2,76 bilhões) foram de fato emprestados pelos agentes financeiros habilitados pela Caixa Econômica Federal, que é operadora do FGTS.
A dinâmica não é exceção. Pelo menos desde 2014, o percentual de execução não chega a 70%.
Em 2017, a proporção de recursos efetivamente gastos em relação ao orçamento final foi de 64,8%. Em 2015, de 51,9%.
Isso não acontece, por exemplo, com a área de construção, que tradicionalmente atinge percentuais superiores a 80%. No ano passado, aliás, enquanto o orçamento para o saneamento encolheu, o da área de moradia cresceu, de R$ 53 bilhões para R$ 57,8 bilhões, dos quais 95,27% foram efetivamente emprestados.
"O setor de construção é mais organizado, tem presença (forte) no conselho do FGTS", diz Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil, organização sem fins lucrativos que monitora o setor.
Essa capacidade de organização ficou clara recentemente, quando o Governo Federal planejava liberar parte do fundo para estimular a economia. O limite de saque acabou sendo reduzido para R$ 500 depois da pressão de empresas de construção civil, que alegaram que, caso fosse disponibilizado um volume maior, faltariam recursos para construção de moradias populares.
A burocracia é apontada como um dos principais entraves. O tempo médio entre o início do trâmite e a chegada do dinheiro aos cofres das empresas, de acordo com a CNI, é de mais de dois anos (27 meses).
"Quando o recurso sai, a cidade já é outra. Já apareceram novas casas (que não estavam no projeto original)... Como vou fazer desapropriação se não tenho dinheiro?", diz Marcus Vinícius Neves, presidente da Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (Aesbe), que reúne as 25 estatais do setor.
A CNI lançou em 2017 um estudo com uma série de propostas para simplificação do processo de empréstimo de recursos do FGTS.
Para se ter ideia de como ele pode ser lento, uma das sugestões era a digitalização da entrega de documentos em um sistema único - já que o sistema da Caixa admitia a entrega on-line de documentos, mas o do Ministério das Cidades, não.
Para o Ministério da Economia, o problema não está nas regras estipuladas pelo Conselho Curador para o fundo. "O tempo despendido para concessão do financiamento decorre do fato de o agente financeiro assumir o risco do crédito perante o FGTS", diz uma nota do ministério à BBC News Brasil.
A baixa qualidade técnica dos projetos e os erros recorrentes são outros fatores que explicam o atraso ou mesmo paralisação das obras, diz Édison Carlos, do Trata Brasil.
"A grande diferença entre saneamento e moradia (que acaba tendo acesso mais fácil aos recursos disponíveis) é o projeto. É muito mais fácil construir uma casa do que uma boa rede de coleta", acrescenta Ilana Ferreira, especialista em economia ambiental.
São estudos que não levam em consideração a estrutura do solo, os índices pluviométricos do município ou o plano de ordenamento territorial (ou seja, quanto a cidade vai crescer e para onde), por exemplo.
Sem uma boa base técnica, a estimativa de custo de muitos projetos acaba sendo pouco realista e falta dinheiro para continuar a obra, ou para investir na manutenção ou na melhoria da infraestrutura.