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Atualidade
13/08/2019 12:30:00

“Até que todas sejamos livres”: a Marcha das Margaridas e a luta das mulheres do campo

A IV edição da Marcha levará milhares de mulheres que sairão pelas estradas do país no domingo (11) até Brasília;


“Até que todas sejamos livres”: a Marcha das Margaridas e a luta das mulheres do campo
Texto de Letícia Sobreira

A Marcha das Margaridas é um ato que leva as reivindicações das mulheres do campo para o centro do poder político brasileiro, a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional, em Brasília/DF. A manifestação oficial acontece tradicionalmente a cada quatro anos no mês de agosto. Este ano vai ter e elas sairão de várias regiões do Brasil rumo a Brasília, no domingo (11), para acampar na capital do País dias 13 e 14.

 

Organizada pela Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), a Marcha é construída continuamente durante o tempo que antecede o ato em Brasília, proporcionando formações políticas para as mulheres. Em Alagoas, neste ano, já ocorreram dois módulos de preparo à marcha. O último está previsto para depois da viagem das agricultoras. A formação é um instrumento de empoderamento feminino e de reconhecimento dos direitos das mulheres, razão pela qual conta com o apoio da Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh).

 

Maior na América Latina

Em homenagem à líder sindical assassinada em 12 de agosto de 1983, Margarida Maria Alves, a Marcha das Margaridas foi criada em 2000 e se tornou um marco de luta por direitos iguais às mulheres da agricultura, sendo a maior ação organizada por trabalhadoras do campo, da floresta e das águas da América Latina. Margarida Alves foi eleita como símbolo dessa luta porque foi morta com um tiro no rosto, na porta de sua casa, na frente do seu filho e do marido, por defender os direitos dos trabalhadores frente aos usineiros e latifundiários paraibanos. À época, Margarida era presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande/PB.

 

A dominação de classes e o machismo

Segundo estudiosos, a condição feminina pode implicar em uma potencialidade para a exploração. Teóricos clássicos da economia e ciência política há muito já alertavam sobre a história do mundo ser contada a partir da guerra de classes - do conflito entre ricos e pobres, da exploração do outro como fonte de lucro. Nesta perspectiva, e dentro das estruturas patriarcais da sociedade, existe um recorte de vivência ainda muito doloroso: as mulheres trabalhadoras, em especial as do campo.

“Nada das características biológicas é uma questão para ser motivo de discriminação”, começa Belmira Magalhães, professora da Universidade Federal de Alagoas, cientista social, pós-doutora em Letras e pesquisadora da Análise do Discurso Político e de Gênero. “O que faz isso são as relações sociais que discriminam sempre do ponto de vista do dominante”, explica. Classe dominante é um termo usado para definir a classe social que tem o poder dos processos econômicos e políticos de uma sociedade.

Branco dominante

No Brasil, a classe dominante tem um perfil majoritariamente masculino, branco e heteronormativo (que marginaliza comportamentos que se diferenciem do padrão heterossexual). Isso se deu com base na construção da nossa sociedade, a partir da colonização europeia, com a perseguição e genocídio dos povos indígenas e a escravidão dos negros e negras trazidos da África criando, por meio de relações de controle e dominação, grupos sociais subalternos ao dos exploradores. “Os dominantes podem pegar aspectos biológicos e naturalizar no sentido de tentar justificar discriminações”, conta a professora.

No caso das mulheres, os direitos sociais foram conquistas marcadas por lutas de reconhecimento ainda recente. No breve histórico brasileiro, fomos consideradas cidadãs 65 anos antes da Proclamação da República, mas o direito ao voto e a candidatura aconteceram apenas em 1932. Nesse contexto, a representação política das mulheres caminhou a duras penas, o que se reflete na desigualdade de gênero nos espaços de representação política, que tenta ser explicado pela concepção da divisão sexual do trabalho. Ainda hoje, há quem acredite não é papel da mulher ocupar posições de decisão.

As “rainhas do lar” e as mudanças de rota 

“Na minha cidade, em Branquinha, o povo dizia que eu era filhinha de papai, patricinha. Mas é que eu sempre tinha deixado que escolhessem as coisas por mim”, diz Raquel do Nascimento, agricultora familiar. Ela conta que até depois do primeiro casamento, que foi praticamente arranjado pelos pais, nunca tinha comprado sequer uma calcinha para si. “Quem escolhia as coisas que eu iria usar era a minha mãe”, completa.

Raquel hoje é secretária de mulheres da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura de Alagoas (Fetag-AL) e uma das organizadoras da Marcha das Margaridas no Estado, mas traçou um caminho árduo até finalmente poder dizer “hoje eu sou uma mulher empoderada”. O empoderamento é uma ação de conscientização sobre os direitos sociais e civis do cidadão, garantindo sua emancipação.

“A Raquel, que o povo chamava de ‘patricinha’, acabou, porque ela teve que assumir a responsabilidade de uma mãe com depressão, tentando se matar”, diz ela quando começa a contar parte de sua história. Depois do primeiro casamento, o primeiro filho, a formação como professora e a volta da família para Alagoas e a zona rural de uma cidade de pouco mais de 10 mil habitantes, Raquel se viu pela primeira vez ocupando uma posição de decisão. Foi quando seu pai foi embora de casa e a sua mãe entrou em um quadro depressivo com tendência suicida. Em seguida, mais um casamento indesejado. “Esse foi o pior, ele não me valorizava e ainda partia para me agredir”, relata. O maior medo que Raquel conta era de ver mais um filho sendo criado sem o pai.

Dominação pelo ato de ser mãe

A professora Belmira Magalhães  explica que o processo de discriminação feminina acontece quando enxergamos as mulheres prioritariamente como mães. Na divisão social do trabalho, é atribuído ao feminino todo trabalho doméstico e de responsabilidade familiar, recebendo o posto de “rainhas do lar”, como coloca a pesquisadora. “A ideia de que ela [a mulher] é mais emotiva, é mais isso, é mais aquilo... tudo isso é uma construção social. Da mesma forma que se constrói a questão do homem como viril, forte, corajoso; também é uma construção. Desde pequena, a criança feminina vai ser ensinada dessa forma: menina fecha as pernas; senta direitinho; não usa isso. Enquanto para o menino é ‘vai lá e briga’”, diz Belmira.

Assim, começando a tomar as rédeas de sua vida, já tendo trocado as salas de aula pelas visitas no assentamento onde morava, como agente de saúde, Raquel participou de um projeto sobre saúde e gênero no campo, se aproximando do povo e do sindicato dos trabalhadores rurais. “Quando comecei a viajar para participar das formações, a minha mãe me dizia ‘tomara que vá e não volte’, lembra Raquel com a voz embargada. “Ainda tinha muito preconceito com a mulher de sindicato”, conta.

Raquel fala que nos momentos difíceis se apegava cada vez mais aos companheiros do sindicato. Foi com as pessoas que ela dividia as trincheiras de luta que encontrou a força que precisava para seguir e se tornar uma liderança feminina do movimento sindical alagoano.

“Pra gente sobreviver no meio do bruto…”

“Ou a gente é bruto também, ou é frouxo. Eu não queria ser frouxa”, começa Marielle dos Santos, 33 anos, depois de ter ouvido as colegas comentarem sobre sua personalidade forte. Os relatos foram contados durante uma formação política para mulheres promovida pela Fetag-AL em preparação para a Marcha das Margaridas. As formações foram dividas em três módulos, acontecendo o primeiro em maio, o segundo em julho e o terceiro está previsto para setembro, depois da realização da Marcha em Brasília.

Nascida em Torrões, um povoado pertencente à cidade de São José Tapera, Marielle é a memória viva da transformação social pela qual a sua geração passou. Jovem e agricultora, enxergou na luta social organizada um instrumento de mudança. Marielle mostra ter como dever pessoal dedicar a vida na construção de um mundo mais justo e igualitário. Hoje, ela é secretária de juventude da Fetag-AL.

“A segunda coisa mais difícil é na vida é ser sindicalista. A primeira é ser mãe”, conta Marielle, que tem uma filha de dois anos junto das companheiras que estão participando do encontro. A fala da jovem foi recebida com uma sonora concordância pelas demais mulheres. Nos discursos seguintes na roda de conversa, todas acordavam que os principais desafios impostos a elas para a participação política giravam em torno das atividades domésticas e familiares.

A contradição

“É uma ideia meio esquizofrênica que colocam na gente.Tem que ir pra rua, tem que trabalhar, mas, o seu lugar é na casa, o seu lugar é cuidando”, comenta a professora Belmira sobre as contradições que são colocadas às mulheres, mesmo as que já estão inseridas em movimentos políticos e sociais.

“A mulheres do movimento rural já fazem parte de um movimento político, já tem isso de forma colocada, sobre o machismo e as relações sociais. Mas mesmo nisso, às vezes você tem pessoas que participam e não entendem efetivamente que tudo é social, construído”, esclarece a professora.

Na roda, o segundo maior ponto de acordo entre as trabalhadoras é aconchegante: o sentimento de companheirismo entre as sindicalistas é o principal motivador para não desistam da luta por direitos.

Conquistas da revolução das Margaridas

A Marcha das Margaridas já conquistou para as agriculturas o direito à titularidade de terra nos assentamentos, antes destinados apenas aos homens; a paridade de gênero nos cargos de direção da Federação; Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR); Pronaf Mulher, do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.

Para a secretária de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, Maria Silva, a Marcha das Margaridas é um exemplo do poder feminino construído diariamente pela formação e educação. “As mulheres agricultoras têm muito mais desafios a enfrentar diariamente do que nós que vivemos nas cidades. Elas merecem não só a nossa admiração, mas todo o apoio para que consigam crescer cada vez mais na organização e conquistar o que é de direito: a liberdade de ser mulher”.

No final de cada reunião de formação e organização das mulheres do campo, em preparação á Marcha das Margaridas, de mãos dadas e olhos marejados, entoam: “seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”. Esse grito de força, liberdade  e empoderamento feminino é construído com muita história de dor e sofrimento, de violência doméstica e de superação da opressão. E assim irão entoando pelas estradas representando a voz de cada brasileira.

Agência Alagoas



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