No último domingo, o Brasil lembrou os 130 anos do fim da escravatura. A data é muito significativa, mas passa despercebida para a maioria dos brasileiros. Não deveria, pois o legado da abolição acompanha o país até hoje, só que de forma negativa: o fracasso do Estado em inserir a população liberta no século 19 é parte integral do fracasso do Brasil de hoje.
Desde o início dos anos 1980, o movimento negro organizado passou a tratar o 13 de maio como um dia não de celebração, mas de luta contra o racismo. A ideia era mostrar para sociedade que a desigualdade existente atualmente é fruto de uma política pública inaugurada junto com a Lei Áurea: abandonar à própria sorte as populações escravizadas.
O resultado da falta de inserção pode ser visto em qualquer estatística. Como mostrou reportagem de Clara Velasco no G1, os negros (pretos e pardos, conforme o IBGE) têm escolaridade menor, salários menores, sofrem mais com o desemprego e, quando empregados, têm menos chance de ter uma função com carteira assinada. Os negros são 55% da população, mas são apenas 20% entre os mais ricos e 80% entre os mais pobres.
Fora da economia, a situação é também vergonhosa. Os negros são 71% das vítimas de assassinatos, compõem 64% da população carcerária, são apenas 1,4% dos juízes e têm menos chances que os brancos de receber uma pena alternativa na Justiça. Como é óbvio, se o recorte de gênero for feito, a situação das mulheres negras é ainda pior. Um dado atroz: pesquisas apontam que as mulheres negras recebem menos anestesia que as brancas ao realizar um parto na rede pública.
Na política, o quadro é semelhante. Apenas 20% dos parlamentares brasileiros são pretos ou pardos. Como mostrou o pesquisador Osmar Teixeira Gaspar, em tese de doutorado na Universidade de São Paulo, os partidos não têm políticas para a inclusão de candidatos negros em suas chapas e, quando esses conseguem furar o bloqueio, em geral têm menos condição financeira que os concorrentes brancos. Sem estrutura financeira e material, os candidatos negros acabam obtendo votos apenas nas áreas próximas de sua atuação, mas têm dificuldade para fazer campanhas maiores.
O resultado disso é que decisões a respeito da população negra são tomadas por uma maioria de brancos. É o mesmo processo que ocorre com os indígenas e com as mulheres, se levarmos em conta que a política é majoritariamente masculina.
Neste ano, há ao menos uma boa iniciativa que tenta minimizar a discriminação – a Frente Favela Brasil. A FFB tentou formalizar sua criação como partido, mas não obteve o número de assinaturas a tempo. Assim, inseriu dezenas de candidatos em partidos de centro-esquerda para tentar ampliar as bancadas negras – como é fácil supor, a maior parte dos moradores de favelas são, também, negros.
A mobilização política é essencial para os grupos vulneráveis. Como principal ferramenta de transformação social disponível nas democracias, ela é o caminho mais rápido, ainda que tortuoso, para promover mudanças.
E, no caso do Brasil, trata-se de um caminho cheio de obstáculos. Vivemos em um país no qual o racismo é estrutural e, ao mesmo estruturante, como mostram as estatísticas. Ao mesmo tempo, é uma sociedade em que o racismo é, em geral, velado, mas, quando exposto, como no caso flagrante de William Waack, negado.
Como se vê, a questão racial no Brasil tem um contexto obsceno. Para quem, negro ou branco, deseja viver em uma nação civilizada, que seja melhor que seu passado, atuar para romper o ciclo iniciado com a Lei Áurea é um dever.
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