BBC Brasil - Há pouco mais de um ano, pesquisadores brasileiros e americanos unidos em um consórcio científico comemoravam os primeiros resultados de uma inédita interface neural - um dispositivo capaz de conectar o cérebro humano a um aparelho externo - que poderia ser a esperança daqueles sem os movimentos de braços e pernas.
A alegria dos cientistas foi abreviada ainda em 2016, quando cortes de verba generalizados atingiram a produção científica nacional. No caso do consórcio, primeiro, os testes foram paralisados. Depois, o time foi desmantelado.
"Todos são procedimentos muito caros. Fizemos um lote de testes e foi quando o Brasil entrou nessa crise e faltou dinheiro para todo mundo", diz Mario Gazziro, pesquisador na USP São Carlos, professor da Universidade Federal do ABC e um dos que encabeçam o projeto.
A empreitada para construir um chip implantável no cérebro e operante com tecnologia sem-fio para devolver movimentos a tetraplégicos começara ainda em 2010. Gazziro estava voltando do Japão após um período de estudos custeados com bolsa do governo brasileiro. Naquela época, ele já havia trabalhado com interfaces neurais, mas em insetos, e queria saltar para soluções em humanos.
Foi quando conheceu o pesquisador americano Stephen Saddow, que há 15 anos pesquisava um material para interfaces neurais que pudesse ser espetado no cérebro apenas uma vez e ali ficasse para o resto da vida, sem irritar os anticorpos do entorno.
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"O material dele era flexível e permitia uma inserção cerebral sem causar traumas. O eletrodo que ele desenvolveu é como uma folhinha de papel, que precisa ser inserida no córtex cerebral. Ninguém faz isso hoje", explica Gazziro.
A descoberta da biocompatibilidade do material, à base de carbeto de silício, pavimentaria o início do projeto Interface Neural Implantável (INI), que reuniria, além de Gazziro e Saddow, a cientista Luciene Covolan, da Unifesp, e uma pequena empresa catarinense, a Chipus Microelectronics, fundada por ex-pesquisadores da Unicamp e da USP São Carlos.
Juntos, eles buscavam desenvolver um chip minúsculo, que transmitiria, via tecnologia wireless, ordens dos cérebro a uma máquina fora do corpo humano, que executaria os movimentos que os membros dos tetraplégicos não conseguem fazer. Se bem-sucedida, a pequena interface seria o elo que finalmente conectaria humanos e exoesqueletos.
"Há anos, pesquisas no campo da ciência biomédica buscam devolver movimentos a pessoas com deficiência, mas essa solução ainda não existe", afirma Paulo Augusto Dal Fabbro, cofundador da Chipus. "O projeto é algo esperançoso."
Implante no cérebro
A busca por uma interface que possibilite o cérebro
comunicar-se diretamente com máquinas começou ainda nos anos 1970. Quatro
décadas depois, as estruturas robóticas vestíveis estão prontas. Um exemplo é o
exoesqueleto desenvolvido pelo time do cientista brasileiro Miguel Nicolelis e
usado por um tetraplégico para o chute inaugural na abertura da Copa do Mundo
em 2014.
Porém, pesquisadores ainda buscam uma solução
implantável para que cérebro e máquina conversem, de forma que sejam
dispensados os fios inseridos na cabeça, cuja durabilidade média é de dois
anos.
"Você não quer ser uma pessoa andando com
cabos que te ligam a um estimulador fora do corpo. Precisa de um sistema que
seja duradouro. E se o fio se enrosca, perdemos o implante ou machucamos o
paciente", explica Luciene Covolan, professora-associada de
neurofisiologia na Unifesp e responsável pelos testes do chip em animais.
Mas para os fios serem substituídos, era preciso
uma opção que consumisse pouquíssima energia, funcionasse sem bateria e, mesmo
abrigando em torno de 500 eletrodos, fosse pequena o suficiente para não ser
rejeitada pelo organismo humano.
A interface de Gazziro, Covolan e seus colegas
funciona por meio de eletrodos feitos de carbeto de silício, acoplados a um
pequeno chip. Ao serem implantados no cérebro de maneira cirúrgica, os
eletrodos, que agem como uma espécie de fio, se comunicam com os neurônios do
córtex motor para captar mensagens neurológicas.
"É dali que saem os sinais para a espinha
(dorsal). Quando a pessoa quer movimentar o braço, a atividade cerebral existe:
no cérebro, você está movendo a mão, mas, se a pessoa danificou a espinha, o
sinal não chega ao corpo", explica Gazziro.
O sinal dos neurônios captado pelo eletrodo é então
transmitido para o chip, que amplifica esse sinal e o manda, via frequência de
rádio, para fora da caixa craniana. Uma antena externa, no couro cabeludo,
capta a mensagem inicial dos neurônios e a envia para a estrutura robótica
acoplada ao corpo do paciente, que responde aos sinais do cérebro, movendo o
membro solicitado.
Nos primeiros testes em animais, os eletrodos se
mostraram resistentes e biocompatíveis com o cérebro, o que, em tese, faria com
que o material durasse a vida toda. Uma única cirurgia seria necessária, para
inserir o chip, que não precisaria ser reposto.
"O cérebro é extremamente sensível. Cada vez
que você espeta ali um eletrodo, é uma agressão ao tecido nervoso. Você não
quer abrir o cérebro a cada dois anos e espetar esse eletrodo lá", explica
Covolan.
"Hoje há interfaces com fios atravessando a
caixa craniana, mas elas trazem a possibilidade de infecção e podem causar
traumas fatais. A nossa solução seria colocar os eletrodos dentro da cabeça do
paciente e nunca mais abri-la. Poderia ser feito com crianças, e nunca mais
precisaria repor", aponta Gazziro.
Sem dinheiro
Em 2012, dois anos após a aproximação inicial entre
Gazziro e Saddow, o cientista americano conseguiu uma bolsa para ser
professor-visitante na USP São Carlos e participar das pesquisas. O dinheiro
veio pelo programa Ciências Sem Fronteiras, que buscava, além de enviar
pesquisadores brasileiros para o exterior, trazer cientistas de alto impacto
para o Brasil.
Em meados de 2015, com a primeira geração da
interface pronta, os testes em animais começaram, e os resultados foram
animadores. "Nos nossos dados preliminares, o carbeto de silício
praticamente não cria resposta inflamatória no tecido nervoso. O tecido
responde de uma maneira muito mais satisfatória que com os eletrodos
tradicionais", afirma Covolan.
No entanto, logo após os resultados positivos, veio
o revés inesperado: a verba de R$ 400 mil solicitada pelos cientistas para a
Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), agência do governo federal, em
2015, não saiu. Como resultado, ficou impossível cobrir os custos dos estudos
clínicos, entre R$ 25 e R$ 30 mil reais cada.
No mesmo ano, a bolsa de Saddow com o Ciências sem
Fronteiras foi suspensa. O cientista mudou-se para a Itália, onde passou os
últimos anos para aprimorar interfaces motoras neuromusculares. Em abril de
2016, o Ciências sem Fronteiras foi definitivamente encerrado.
Sem dinheiro para os testes e com o corte de verbas
para pesquisadores, no ano passado Covolan mudou-se para os Estados Unidos,
onde tinha uma oferta para continuar suas pesquisas, sobre epilepsia e
acidentes vasculares cerebrais (AVC), no Lerner Research Institute, na
Cleveland Clinic.
"O ano de 2016 foi muito difícil. Você
conversava com as pessoas e havia desânimo geral", diz Covolan. "Isso
levou várias pessoas a buscar outros caminhos. (Vir para os EUA) foi uma
alternativa que encontrei para continuar meus projetos e não perder
produtividade".
Gazziro lamenta a dispersão do time: "Depois
de três anos com todo mundo trabalhando junto, de repente, por uma crise,
perdemos dois pesquisadores. Foi muito triste."
Procurado para comentar o corte de verbas e o
impacto do fim do programa Ciência sem Fronteiras em pesquisas no Brasil, o
Ministério da Ciência e Tecnologia não respondeu.
Chip entre os três de menor consumo
de energia no mundo
Apesar da falta de investimentos, as pesquisas não
pararam. No último ano, os pesquisadores refinaram a parte teórica do projeto e
melhoraram o consumo de energia do chip implantável. "Naquela época, (o
nosso chip) já estava entre os três de menor consumo de energia do mundo, mas
melhoramos aquele resultado em dez vezes de lá para cá", diz Gazziro.
Os pesquisadores também encontraram uma nova
frequência de operação para o chip, que resulta em menor absorção de energia
pelos tecidos e a água que existem no córtex cerebral, o que melhora o
funcionamento da interface. "O chip tem o eletrodo que capta informações
do córtex para enviar aos membros, e ele precisa de energia para trabalhar. Com
essa descoberta, vamos redesenhar parte do circuito", explica Augusto Dal
Fabbro, da Chipus.
Em 2018, os cientistas tentarão novo financiamento.
Se sair e a pesquisa obtiver sucesso, os pesquisadores pretendem doar a patente
a grandes laboratórios para testarem a interface. "Os exoesqueleto estão
prontos, mas não existe ainda uma interface cerebral que permita que esse
exoesqueleto seja unido ao corpo de maneira segura e permanente", afirma
Gazziro.
"O mundo todo está buscando uma interface que
funcione. O nosso trabalho é provar para o mundo que essa solução é a
nossa."