Levantamento obtido pelo Estadão aponta que, em ações que envolvem réus com foro privilegiado avaliadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apenas 3% resultaram em condenação. Na maioria dos casos (58%) as ações foram remetidas a instâncias inferiores por perda de prerrogativa de função do réu antes da conclusão do julgamento. Outros 13% prescreveram e 16% estavam à espera de conclusão. Em 10% dos casos os réus foram absolvidos.
Os números se referem a matérias analisadas pela Corte entre os anos de 1989 e 2016. Para especialistas, o não julgamento privilegia investigados e pode contribuir para a impunidade.
Cientista político e um dos autores da pesquisa, José Mário Wanderley Gomes Neto afirmou que o não julgamento de autoridades públicas no Supremo tem sido "silencioso" nos últimos anos. "Os ministros argumentam que estão cumprindo com as garantias necessárias do processo. Mas ter como resultado normal a prescrição ou a realocação de instância mostra que não está havendo uma tramitação necessária para se julgar", disse o professor da Universidade Católica de Pernambuco.
Um caso recente de mudança de foro foi o do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. O inquérito aberto para investigar a suposta omissão na crise do Amazonas foi enviado à primeira instância no dia 24 de março, após Pazuello deixar o ministério.
O grande problema da transferência de responsabilidade, segundo especialistas, é que o "cronômetro processual" continua rodando. "Há um custo de tempo maior ao processo, e esse custo aumenta as chances de impunidade, já que uma parcela de processos prescreve", disse o professor associado do Insper Ivar Alberto Hartmann.
Um caso emblemático foi o do ex-senador Ronaldo Cunha Lima. A ação que julgava tentativa de homicídio contra seu antecessor, Tarcísio Burity, ficou cinco anos tramitando no Supremo. Em 2007, às vésperas de a ação ser julgada, ele renunciou ao segundo mandato de deputado federal. O processo, então, voltou para a Justiça da Paraíba e foi arquivado em 2012, com a morte de Cunha Lima.
Em 2015, duas ações que miravam os então senadores Marta Suplicy e Jader Barbalho prescreveram quando ambos completaram 70 anos - o prazo de prescrição de um crime cai pela metade quando o réu atinge essa idade.
A edição de 2017 do estudo Supremo em Números, da FGV, também tratou do foro privilegiado no Supremo. Hartmann foi um dos autores da pesquisa, que chegou à conclusão de que apenas 5,94% das ações penais começam e terminam no Supremo.
Mas por que o Supremo deixa de julgar grande parte dessas ações? Não há uma só resposta, porém Hartmann acredita que o pouco incentivo seja uma delas. "Encontramos processos que estavam conclusos por anos e bastava o ministro tomar providências, mas ele escolheu não fazer nada. Soma-se a isso a ausência, por parte do tribunal, de estímulos adequados à eficiência especificamente nos casos do foro privilegiado", disse.
Para a professora de direito processual penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Marta Saad, os dados indicam que o Supremo não tem, realmente, "vocação" para funcionar como juiz de primeiro grau. "Na prática, o STF dirige esforços para aquilo que realmente se espera de uma corte constitucional, cuja função primária é revisar possíveis infrações à Constituição", afirmou Marta. Não à toa, a pesquisa dos cientistas políticos José Mário Wanderley Gomes Neto e Ernani Carvalho mostra que as ações de controle de constitucionalidade continuam sendo a pauta mais julgada pelo plenário da Corte.
O estudo conclui que crimes eleitorais têm três vezes mais chances de condenação do que o de corrupção. Já entre os réus não julgados, senadores possuem 3,1 vezes mais chance de seus processos permanecerem parados sem decisão, enquanto que deputados federais possuem 6,2 vezes mais chances de ser verificada a ausência de decisão nos seus processos.
Nos últimos anos, o Supremo tem se movimentado para restringir as hipóteses do foro. Em 2001, a prerrogativa foi reduzida apenas ao período em que as autoridades exerciam suas funções públicas. Em maio de 2018, os ministros determinaram que deputados e senadores só teriam foro garantido em caso de crimes cometidos durante o mandato e em função do cargo que ocupam.
Ao Estadão, o ministro do STF Luís Roberto Barroso afirmou que houve uma redução drástica de processos na Corte após o novo entendimento. Mas a "subida e descida" de casos continua sendo um problema. "A consequência é a ineficiência da investigação, sobrevindo a absolvição por falta de provas ou a prescrição", disse. Para o ministro, no modelo ideal de foro apenas os chefes de Poder têm acesso ao direito.
Por meio de nota, o Supremo afirmou que o tempo de tramitação varia de acordo com a complexidade de cada ação e com os tipos de ritos, recursos e procedimentos. "A Secretaria Judiciária e os gabinetes acompanham periodicamente os prazos de prescrição dos processos em andamento. O mesmo acompanhamento é realizado pela presidência do tribunal a partir da liberação dos casos pelo relator para a devida inclusão oportuna em pauta."
1. O que é o foro?
O foro por prerrogativa de função, também chamado de foro privilegiado, determina que certas autoridades possam ser julgadas por instâncias específicas do Judiciário, e não a primeira instância, como qualquer cidadão.
2. Para que serve o foro?
O intuito do foro é resguardar determinado agente público em virtude de seu papel institucional. Ou seja, evitar que autoridades fiquem sujeitas a ações pontuais de juízes de primeiro grau, que estão mais vulneráveis a pressões externas.
3. Quem tem direito ao foro privilegiado?
As principais autoridades com foro julgadas no STF são o presidente da República e seu vice, os ministros de Estado, os membros do Congresso, o procurador-geral da República e os comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica. Há, no entanto, outras possibilidades previstas no artigo 102 da Constituição.
4. O que é preciso para ter acesso ao foro?
Além de possuir um cargo com foro previsto na Constituição, é preciso que a autoridade ainda esteja no exercício da função e o crime tenha sido cometido no exercício do mandato e em função do cargo.
Fonte Estadão
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