Sobre esses comportamentos, Varella explica que tendências paranoicas, por exemplo, nos protegem quando nos sentimos em perigo por diminuírem a chance de não detectarmos a fonte do perigo. E maior sociabilidade também configura vantagem, pois perceber-se em grupo gera segurança e dificulta emboscadas. “Ser destemido é um pré-requisito para se embrenhar num ambiente perigoso”, aponta. Além disso, seu estudo mostrou que o cansaço após o dia é um fator que dificulta o autocontrole, desencadeando comportamentos mais impulsivos, assim como a própria baixa visibilidade noturna propicia a ocultação da identidade que, por sua vez, está ligada à desinibição e ao autointeresse. A literatura de cronobiologia levantada mostrou que indivíduos mais vespertinos apresentam de forma mais proeminente as características psicológicas correspondentes a esses desafios evolutivos do ambiente noturno.
Um exemplo apresentado por Varella é a cópula. De acordo com o pesquisador, a reprodução é a principal “meta” evolutiva das espécies e, no caso dos humanos, a atividade sexual é, até os dias de hoje, interculturalmente comum ao período noturno. “Isso fez com que a noite virasse uma arena de exibições estéticas e de coragem voltadas para a busca de parceiros sexuais, onde ter a cópula mais invisível aos ‘competidores’ fazia parte do sucesso reprodutivo”, afirma. Quando se trata de identificar o perfil, Varella constatou que o padrão de predominância na ocupação desse habitat noturno não eram as crianças e idosos, visto que ambos dormem cedo, mas adolescentes e jovens adultos, um pouco mais homens do que mulheres, os quais estão mais voltados para a busca de novos parceiros amorosos.
Pessoas mais noturnas
Entretanto, o conjunto dessas características psicológicas que, por pressão seletiva, foram herdadas evolutivamente e são mais acentuadas em pessoas vespertinas, hoje são o oposto às medidas restritivas.
O pesquisador ainda alerta que condições impostas pela pandemia direcionam à noite os hábitos dos indivíduos com o cronotipo matutino ou intermediário, isto é, que naturalmente se regulam a não dormir e acordar tarde. Segundo ele, as restrições sociais na pandemia retiraram a obrigatoriedade de acordar cedo para se locomover ao trabalho, à escola e à universidade, por exemplo, e interferem na vida social, ao passo que geram uma tendência a se resistir e voltar a interagir com os amigos e amantes. Especialmente pela covid-19 ser, muitas vezes, assintomática, passando despercebidas as nossas predisposições para evitação de contágio. “E ainda o aumento da iluminação artificial noturna, especialmente com led azul, inibe a melatonina (hormônio do sono), o que também faz com que as pessoas fiquem mais noturnas”, completa o cientista.
Ele ressalta que “os noturnos” não são o único problema da pandemia, que não exibem apenas características indesejáveis e que não basta toque de recolher à noite diante de novas variantes e UTIs lotadas. “É preciso testagem e vacinação em massa, rastreio de contatos, lockdown nos locais com alta lotação das UTIs, ampla distribuição de máscaras PFF2 e auxílio emergencial digno para que as pessoas possam ficar em casa um ou dois meses até invertermos a curva ascendente de contágios.”
Mais informações: e-mail macvarella@usp.br, com Marco Antonio Corrêa Varella
Jornal USP