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Atualidade
23/04/2021 10:00:00

Psicologia evolucionista: pessoas de hábito noturno podem ser ameaça ao controle epidemiológico

Pesquisa compara o perfil daqueles que não respeitam as medidas de combate à pandemia aos aspectos psicológicos herdados desde o controle ancestral do fogo


Psicologia evolucionista: pessoas de hábito noturno podem ser ameaça ao controle epidemiológico

Pesquisa do psicólogo evolucionista Marco Antonio Corrêa Varella, pós-doutorando do Instituto de Psicologia (IP) da USP, levanta e fundamenta conceitualmente uma hipótese sobre as raízes psicológicas da desobediência na pandemia e abre uma discussão sobre políticas sanitárias de contenção do contágio do coronavírus. Segundo o estudo, pessoas que possuem cronotipo vespertino, ou seja, que têm mais inclinações ao hábito noturno, podem ser uma ameaça às medidas de controle biológico. Cronotipo é a propensão natural a ter disposição ou cansaço em determinados períodos do dia.

Varella identificou que as pessoas que não cumprem as normas de higiene e restrição na pandemia tendem a ser do sexo masculino, jovens, paranoicos e com crenças conspiratórias. Também são, em geral, destemidos, com baixo autocontrole, extrovertidos, mais voltados a novos parceiros sexuais e com menor empatia. A pesquisa indica que essas são características evolutivas dos indivíduos que têm maior afinidade com os períodos noturnos, que, por si só, geralmente são espaços de risco de contaminação. Estudos apontam um maior tempo de circulação do coronavírus no ar em ambientes fechados e desprovidos de luz do sol, quando comparado ao oposto.

“A ação da epidemiologia para conter essa pandemia só se realiza plenamente com a ajuda da psicologia, pois é o comportamento dessas pessoas que promove a disseminação desse vírus” 

Festa - Foto: StockSnap - Pixabay

O pesquisador analisou artigos sobre a origem do uso do fogo e sobre as questões adaptativas recorrentes do nicho noturno ligadas ao cronotipo. Também avaliou estudos que envolvem seleção sexual e cronotipo, descompassos evolutivos modernos em contexto de pandemia e sobre a própria desobediência às regras sanitárias. A revisão bibliográfica resultou no artigo COVID-19 Pandemic on Fire: Evolved Propensities for Nocturnal Activities as a Liability Against Epidemiological Control, publicado na Frontiers in Psychology, em março deste ano.

Raízes evolutivas

“A revisão não pode ser usada para apoiar a aplicação do toque de recolher atualmente, visto a gravidade da situação, que exige lockdown, mas abre a discussão para medidas próprias voltadas para pessoas mais vespertinas [com cronotipo noturno], ao se reconhecer que é um grupo de risco para o alto contágio”, afirma psicólogo.

Festa clandestina – Foto: Fotos públicas

Segundo ele, diariamente vemos notícias de festas clandestinas, cassinos, boates e bares furando as restrições em atividades noturnas. A revisão mostra que podem existir raízes evolutivas profundas por trás da disposição para socializar à noite, mesmo em tempos de pandemia.

De acordo o psicólogo evolucionista, a hipótese está de acordo com estudos mostrando superespalhamento viral também em locais noturnos como bares, restaurantes e nightclubs, e com os poucos estudos que mostram que o toque de recolher noturno tem um efeito mitigador de transmissão viral, ainda que menor do que o lockdown. Mesmo assim, ele afirma que é preciso um teste experimental sistêmico e intercultural para uma (des)confirmação direta da sua tese. 

Varella explica que, até então, a maioria dos estudos se baseava em caracterizar jovens, adultos e idosos, e diferenciar homens e mulheres, para entender o comportamento psicossocial desses indivíduos em meio à pandemia. Mas o pós-doutorando percebeu que, possivelmente, não se trata tão diretamente de sexo ou idade, mas sim da inclinação aos hábitos cronotípicos (matutinos, intermediários e vespertinos). 

O uso habitual do fogo pelos humanos há cerca de três centenas de milênios possibilitou a abertura do nicho noturno, novo à espécie. Desde então, alguns aspectos psicológicos preexistentes em nossa espécie foram amplificados evolutivamente na medida em que esses traços se apresentavam como vantagens de sobrevivência no perigo da noite, sendo então mais presentes nos indivíduos de cronotipo vespertino.

Marco Antonio Corrêa Varella - Foto: Arquivo pessoal

Marco Antonio Corrêa Varella - Foto: Arquivo pessoal

Sobre esses comportamentos, Varella explica que tendências paranoicas, por exemplo, nos protegem quando nos sentimos em perigo por diminuírem a chance de não detectarmos a fonte do perigo. E maior sociabilidade também configura vantagem, pois perceber-se em grupo gera segurança e dificulta emboscadas. “Ser destemido é um pré-requisito para se embrenhar num ambiente perigoso”, aponta. Além disso, seu estudo mostrou que o cansaço após o dia é um fator que dificulta o autocontrole, desencadeando comportamentos mais impulsivos, assim como a própria baixa visibilidade noturna propicia a ocultação da identidade que, por sua vez, está ligada à desinibição e ao autointeresse. A literatura de cronobiologia levantada mostrou que indivíduos mais vespertinos apresentam de forma mais proeminente as características psicológicas correspondentes a esses desafios evolutivos do ambiente noturno. 

Um exemplo apresentado por Varella é a cópula. De acordo com o pesquisador, a reprodução é a principal “meta” evolutiva das espécies e, no caso dos humanos, a atividade sexual é, até os dias de hoje, interculturalmente comum ao período noturno. “Isso fez com que a noite virasse uma arena de exibições estéticas e de coragem voltadas para a busca de parceiros sexuais, onde ter a cópula mais invisível aos ‘competidores’ fazia parte do sucesso reprodutivo”, afirma. Quando se trata de identificar o perfil, Varella constatou que o padrão de predominância na ocupação desse habitat noturno não eram as crianças e idosos, visto que ambos dormem cedo, mas adolescentes e jovens adultos, um pouco mais homens do que mulheres, os quais estão mais voltados para a busca de novos parceiros amorosos.   

Pessoas mais noturnas

Entretanto, o conjunto dessas características psicológicas que, por pressão seletiva, foram herdadas evolutivamente e são mais acentuadas em pessoas vespertinas, hoje são o oposto às medidas restritivas.

O pesquisador ainda alerta que condições impostas pela pandemia direcionam à noite os hábitos dos indivíduos com o cronotipo matutino ou intermediário, isto é, que naturalmente se regulam a não dormir e acordar tarde. Segundo ele, as restrições sociais na pandemia retiraram a obrigatoriedade de acordar cedo para se locomover ao trabalho, à escola e à universidade, por exemplo, e interferem na vida social, ao passo que geram uma tendência a se resistir e voltar a interagir com os amigos e amantes. Especialmente pela covid-19 ser, muitas vezes, assintomática, passando despercebidas as nossas predisposições para evitação de contágio. “E ainda o aumento da iluminação artificial noturna, especialmente com led azul, inibe a melatonina (hormônio do sono), o que também faz com que as pessoas fiquem mais noturnas”, completa o cientista.

Ele ressalta que “os noturnos” não são o único problema da pandemia, que não exibem apenas características indesejáveis e que não basta toque de recolher à noite diante de novas variantes e UTIs lotadas. “É preciso testagem e vacinação em massa, rastreio de contatos, lockdown nos locais com alta lotação das UTIs, ampla distribuição de máscaras PFF2 e auxílio emergencial digno para que as pessoas possam ficar em casa um ou dois meses até invertermos a curva ascendente de contágios.”

Mais informações: e-mail macvarella@usp.br, com Marco Antonio Corrêa Varella

Jornal USP



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