A pandemia do de covid-19 levou mais de 116,8 milhões de brasileiros a uma vida sem acesso permanente aos alimentos.
De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, 43,4 milhões de pessoas vivem com insegurança alimentar leve ou moderada e 19,1 milhões chegam a passar fome.
Os pesquisadores chegaram a essa conclusão após os entrevistados responderem a 14 perguntas que definiram os problemas enfrentados pelas famílias nos três meses anteriores à pesquisa, feita em dezembro de 2020.
Para Tereza Campello, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), o inquérito se preocupou em medir a percepção do indivíduo sobre a falta de comida.
“O impacto da fome não é só na balança. A pessoa não é só comer e pronto. O ‘acho que não vou comer’, ‘não sei o que vai acontecer amanhã’ influenciam muito a vida das pessoas. Imagina a situação: o último arroz e feijão que tenho dá até o domingo, tenho um ovo e divido em quatro. Semana que vem não tenho nada”, alerta Tereza.
Essa percepção que define os estágios da situação alimentar de cada família. A EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar) classifica um domicílio com insegurança leve, quando existe a preocupação do acesso ou da qualidade dos alimentos no futuro.
Por exemplo, os moradores fazem estratégias para manter uma quantidade mínima de alimentos, trocando produtos por causa do preço.
Na insegurança moderada, os indivíduos têm acesso a uma quantidade restrita de alimentos. A família não tem disponível o que precisa para se alimentar.
Já a insegurança grave existe quando as famílias passam por privação severa no consumo de alimentos, podendo chegar à fome.
Vale destacar que a pesquisa foi feita com base no mês de dezembro, quando ainda estava sendo pago o auxílio emergencial.
A nutricionista Vanderli Marchiori, da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição, explica que a quantidade de caloria necessária para sobrevivência varia entre 800 e 1.200 por dia.
“Os valores dependem da idade e gênero. No mundo ideal, não podem faltar proteínas, carboidratos e gorduras. Os macronutrientes não são mais importantes, mas são decisivos para nos manter vivos”, diz a profissional.
Ela completa com a importância dos micronutrientes: “a deficiência de vitaminas e minerais, que chamamos de micronutrientes, é muito importante para a regulagem metabólica, para não ter anemia, não ter queda de cabelo e outros problemas”, ensina.
De acordo com especialista, outro problema que contribui para o Brasil passar por problemas de nutrição e subnutrição é o tipo de alimento que as pessoas têm acesso.
Para Tereza Campello a pandemia deixou mais rápido um processo que já estava acontecendo no Brasil.
“A covid acelerou a tendência da má alimentação, o consumo de ultra processados, porque o governo federal deixou de tratar o assunto como importante. Alimentar-se corretamente é uma questão de saúde, política pública. Não é simplesmente não tem arroz, que está caro, faz macarrão, porque desestrutura o prato que o brasileiro está acostumado”, explica a professora da USP.
O prejuízo do aumento da fome no Brasil pode ser ainda maior a médio e longo prazos.
“Economistas dizem: quanto vai custar o auxílio emergencial? Mas a pergunta deve ser quanto custará não fazer? Vai custar muito, vai se perder uma geração de crianças no Brasil. Essa criança vai aprender mal na escola, não vai conseguir ser alfabetizada com facilidade”, reforça Tereza Campello.
Que complementa, pensando no futuro. “Será uma geração de trabalhadores mais fracos do que ele seria, normalmente, menos criativo do poderia ser intelectualmente. Quanto custa não fazer uma política pública de erradicação da fome?”, pergunta Tereza Campello.
Vanderli Marchiori explica que no caso das crianças mal-alimentadas os danos são irreversíveis.
“Por mais que tenham estímulo e treinamento, as crianças com deficiência calórico-proteica continuam sem a capacidade cognitiva completa. Até os cinco anos é a fase mais importante do desenvolvimento neurocerebral”, contra a nutricionista.
No caso de adultos, o comprometimento é de massa muscular, energia e déficit cerebral, mas é transitório. A volta da nutrição correta é capaz de reverter os problemas.
“Falamos em comprometimento de massa muscular, que passa a ser uma grande fonte de energia para o corpo. A pessoa que não come tem muito menos energia para desenvolver qualquer atividade física, inclusive trabalhar. O conceito de chamar morador de rua de folgado, preguiçoso não é verdadeiro. A verdade é que ele não energia para absolutamente nada”, explica Marchiori.
As ações de doação de cestas básicas e marmitas são apontadas pelos especialistas como importantes, mas não podem ser a única forma de ação para garantir a alimentação de famílias necessitadas.
“As pessoas discutem que deve ter doação. O que tem de ter política pública. A doação pode complementar, mas não podemos esquecer que as entregas são mais restritas aos grandes centros. A fome nas zonas rurais é ainda pior”, lembra Tereza.
A nutricionista da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição concorda que a solução do problema não está só na solidariedade.
R7
“As ações solidárias são soluções imediatas, mas não perenes, acabam sendo tapa-buracos. Mas, nesse momento, é vital porque as pessoas passam muita fome e não têm nenhuma perspectiva de melhora”, afirma Vanderli.
A pesquisadora da USP ressalta que até solidariedade tem limites. “A população pobre também tem limite para se ajudar, porque ela foi empobrecendo ao longo desse ano de pandemia. Quem tinha um pouquinho, já torrou e não tem mais o que fazer”, diz.
Tereza finaliza com a lembrança de mais uma herança da crise da pandemia.
“Não basta só distribuir comida, é importante falar de onde comprar, como comprar para assegurar que os pequenos produtores não percam tudo. Já perderam muito sem a compra de suas produções para fazer as merendas escolares. Se eles perderem mais e saírem da zona rural para a cidade, não tem volta. As consequências sobre a produção de hortifruti vão ser sentidas por muito tempo”, assegura.