Três juízes terão na sua mão daqui a uma semana boa parte do futuro político do Brasil. No próximo 24 de janeiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se submete a uma decisão que pode afetar não apenas seus rumos políticos, mas as eleições presidenciais do país. Os três desembargadores do TRF (Tribunal Regional Federal) da 4ª Região, em Porto Alegre, que julga os processos de segunda instância relacionados com a Operação Lava Jato, avaliarão se mantêm a condenação de nove anos e seis meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro dada pelo juiz Sérgio Moro em julho passado.
As consequências políticas da decisão judicial são enormes. Segundo as pesquisas, as chances de Lula ser investido presidente no próximo outubro não deixaram de aumentar nos últimos meses, logo depois da sua condenação. Caso a sentença seja confirmada, o ex-presidente poderá se tornar inelegível, ainda que o tempo do trâmite legal permita que ele possa realizar a campanha. Que o ex-presidente esteja ou não nas eleições parece decisivo para o desfecho da corrida. É por isso que o debate público sobre o assunto está mais focado nas questões políticas do que nas jurídicas ou nos fatos que embasaram a sentença. E quais são esses fatos? São provas claras, como disse o juiz, ou é simplesmente uma ilação de Moro, como alegam os advogados do ex-presidente? O que é que tem que decidir o Tribunal?
Segundo a sentença, Lula recebeu da construtora OAS dinheiro ilícito de corrupção dissimulado na compra e reforma de um triplex no Guarujá (litoral de São Paulo). Este dinheiro, segundo o juiz, teria origem em desvios de contratos da OAS com a Petrobras.
Na prática, os três desembargadores do TRF-4 devem decidir sobre os pedidos da defesa. Os advogados de Lula querem a declaração de nulidade do processo ou da sentença, argumentam que não há provas e que a decisão de Moro tem "vícios graves". Afirmam ainda que o juiz de Curitiba, responsável pelas investigações de corrupção na Petrobras, não poderia ter julgado a ação porque não se comprovou o uso de dinheiro ilícito da petroleira e, portanto, o processo não estaria no escopo da Lava Jato.
Mas, para além disso, a principal vertente da tese da defesa é que há provas de que o apartamento nunca pertenceu a Lula e, sim, era da OAS. "A visão da defesa é que o único resultado possível é a absolvição. Não há a possibilidade de uma pessoa que não praticou um crime ser condenada. E foi isso que aconteceu em primeira instância", afirmou ao EL PAÍS o advogado de Lula,Cristiano Zanin Martins.
Mas quais são os principais pontos colocados na sentença? E quais são as provas usadas por Moro? Entenda abaixo as chaves do caso:
De quem é o apartamento?
A família de Lula havia adquirido em 2005 uma cota de um empreendimento no Guarujá que seria referente a um apartamento simples, de número 141-A. O empreendimento era construído pela Bancoop (a Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo), criada em 1996 por um núcleo do PT. Após problemas de gestão e denúncias de desvios de verba, a cooperativa em crise ofereceu em 2009 parte de seus empreendimentos em construção para a empresa OAS. Entre eles, o do Guarujá.
Segundo José Adelmário Pinheiro Filho, o Léo Pinheiro, um dos sócios da OAS, a empresa inicialmente não tinha interesse em adquirir o empreendimento, mas ele foi advertido por João Vaccari Neto, ex-presidente da Bancoop e mais recentemente condenado por corrupção passiva quando tesoureiro do PT, de que nele havia uma propriedade de Lula. "Diante disso eu disse: 'olha, se tratando de uma coisa dessa monta eu vou...', afirmou o ex-executivo em seu depoimento à Justiça.
Disse ainda que, desde o início, foi alertado de que o apartamento de número 164-A, o triplex, pertencia a Lula e não podia ser comercializado. Já o outro apartamento, o 141-A, estava liberado para a venda. Segundo o processo, todos os cooperados foram avisados em outubro de 2009, após a OAS assumir o empreendimento, que deveriam notificar a construtora se manteriam o apartamento ou se queriam que os valores fossem ressarcidos.
A família de Lula tinha pago 209.000 reais pelo apartamento tipo, mas não informou à construtora sua opção. O ex-presidente não soube responder o motivo diante de Moro. "Eu tenho uma hipótese, a dona Marisa pode não ter recebido o convite para participar da assembleia [dos cooperados]", respondeu, em referência a sua mulher, a ex-primeira-dama, Marisa Letícia, que morreu em fevereiro do ano passado. A desistência do apartamento só teria sido comunicada por ela a OAS em novembro de 2015, "depois da prisão cautelar de José Adelmário Pinheiro Filho (em 14 de novembro de 2014) e da publicação a partir de 07 de dezembro de 2014 de matérias em jornais sobre o triplex", ressaltou Moro.
O triplex, entretanto, continuou em nome da OAS. E está aqui o ponto principal da defesa: não há documento que prove que ele foi ou é da família. Inclusive, a OAS já teria utilizado o triplex em uma operação em 2009 com a Caixa Econômica Federal e, no final do ano passado, o imóvel foi penhorado pela Justiça por dívidas da empresa, conforme mostram documentos protocolados pela defesa no TRF-4 nesta terça-feira.
Já Moro argumentou em sua decisão que foram apreendidos documentos na residência de Lula como um Termo de Adesão e Compromisso de Participação que "embora não assinado, diz respeito expressamente à unidade 174, a correspondente ao triplex" e que documentos internos da OAS apontam que o apartamento estava reservado para o ex-presidente. "Não se está aqui a discutir a titularidade formal do imóvel ou questões de Direito Civil, mas sim crime de corrupção e lavagem de dinheiro, este último pressupondo condutas de dissimulação e ocultação. O imóvel, segundo a matrícula nº 104801, encontra-se em nome da OAS Empreendimentos, tendo sido, porém, solicitado a ocultação da titularidade de fato, que era do ex-presidente", ressaltou ele.
Quem bancou as reformas?
Segundo o Ministério Público, a OAS realizou reformas expressivas no triplex em 2014, que totalizaram 1,1 milhão de reais. As obras seriam referentes a instalação de um elevador privativo, de armários na cozinha, a demolição de um dormitório, a retirada de uma sauna, a ampliação do deck da piscina e a colocação de aparelhos domésticos. " A OAS Empreendimentos não fez isso em relação a qualquer outro apartamento no Condomínio Solaris, nem tem por praxe fazê-lo nos seus demais empreendimentos imobiliários", argumentou Moro. Ele usa depoimentos de executivos da empresa para apontar que as reformas foram feitas a pedido da família de Lula. Léo Pinheiro afirma que em janeiro de 2014 o ex-presidente o chamou e disse que gostaria de visitar o apartamento (uma visita registrada por fotos divulgadas na imprensa). "No primeiro andar a esposa do presidente fez um comentário, disse :'olhe, vai ser necessário mais um quarto aqui no primeiro andar' (...) tinha uma questão também da cozinha que deveria ser feita algumas modificações para melhor aproveitamento do espaço (...) já ficou definido que nós teríamos que fazer uma alteração".
Houve depois uma segunda visita, desta vez só da ex-primeira dama com um dos filhos de Lula, Fábio. "Já estava numa fase bem adiantada a reforma, eles falaram: 'está tudo ok'. Então dona Marisa me fez um pedido, disse: 'olhe, nós gostaríamos de passar as festas de final de ano aqui no apartamento, teria condições de estar pronto?", ressaltou Léo Pinheiro. Ele afirmou que em nenhum momento discutiu com o ex-presidente qualquer pagamento pelas reformas e nem pela diferença de valor entre o primeiro apartamento e o triplex, cuja área era três vezes maior.
Lula nega que tenha pedido qualquer reforma. Diz que Léo Pinheiro falou a ele sobre o imóvel porque gostaria de vende-lo ao ex-presidente. E que ele, quando sua visita, "colocou 500 defeitos". "Certamente [Marisa fez a segunda visita] para dizer que eu não queria mais o apartamento, porque (...) eu percebi que ele era praticamente inutilizável por mim pelo fato de eu ser, independente da minha vontade, uma figura pública e eu só poderia ir naquela praia ou segunda-feira ou quarta-feira de cinzas", afirmou o ex-presidente. "Eu não ia ficar com o apartamento, mas a dona Marisa ainda tinha dúvida se ia ficar para fazer negócio ou não", destacou ele.
A defesa também argumenta que não há provas de que a família pediu qualquer reforma. "O imóvel ficou pronto em 2013. Porque só em 2014 alguém teria pedido alguma reforma? Se o apartamento era do presidente Lula efetivamente, porque ele não teria pedido para que ele fosse entregue com tudo pronto e acabado?", ressalta Zanin.
E qual a ligação de tudo isso com a Petrobras?
Este processo contra Lula foi julgado por Moro por ter, segundo a acusação, ligações com irregularidades da petrolífera, cujas denúncias de corrupção desencadearam a gigantesca Operação Lava Jato. Segundo o MPF, que fez a denúncia, o Grupo OAS, então presidido por Léo Pinheiro, pagou um total de 87,6 milhões de reais em propinas por contratos com a Petrobras. Um porcento desse valor, aponta o MP, foi destinado a agentes políticos do PT em uma conta geral de propina que o partido mantinha com a OAS. Desta conta, afirma, teriam saído 2,42 milhões para o caso do Guarujá, referentes à diferença de valor entre o triplex e o apartamento tipo que a família teria direito (1,14 milhão) e nas reformas e bens (1,27 milhão).
"O ex-presidente tinha um papel relevante no esquema criminoso, pois cabia a ele indicar os nomes dos diretores ao Conselho de Administração da Petrobras e a palavra do Governo Federal era atendida. Ele, aliás, admitiu, em seu interrogatório, que era o responsável por dar a última palavra sobre as indicações, ainda que elas não fossem necessariamente sua escolha pessoal", afirmou Moro. "A conta corrente geral de propinas era alimentada por acertos de corrupção em diversos contratos do Governo Federal, mas entre os acertos estavam aqueles havidos em contratos com a Petrobras (...) A conta corrente geral de propinas era administrada pelo Presidente da OAS que declarou que debitou da conta as despesas que a OAS teria tido com a transferência dos empreendimentos imobiliários da Bancoop (...) Incluído nisto estava o custo da reforma do triplex e sua diferença de preço".
Para a defesa, entretanto, não há como provar a relação do dinheiro da reforma e do apartamento com as propinas da Petrobras. "Você não pode condenar alguém pela prática de crimes financeiros se não houver um rastreamento de valores indicando a origem ilícita. E este rastreamento não foi feito aqui. Simplesmente foi usada a palavra isolada do Léo Pinheiro para condenar o ex-presidente Lula", disse o advogado.
El País