Alice Maciel |
Agência Pública - “Continuamos no mesmo barco,
mas agora estamos à deriva, sem remo”, diz o presidente da Associação
Quilombola de Mangueiras, Maurício Moreira dos Santos. Localizado na região
nordeste de Belo Horizonte, o quilombo de Mangueiras teve seu território
reconhecido no último ano de governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em
janeiro de 2016. O reconhecimento é o passo anterior à titulação, que garante a
posse permanente da terra. O processo que “caminhava muito lentamente”, como
Maurício observa, parou. “Não existe comunidade quilombola sem sua terra”,
destaca.
O governo de Michel Temer, em abril, mandou suspender os
processos administrativos para emissão de decreto presidencial
autorizando a desapropriação de imóveis rurais situados nos territórios
quilombolas reconhecidos pelo Incra até a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) dos procedimentos para identificação e titulação das terras
quilombolas, previstos no Decreto 4.887, de 2003. A constitucionalidade da
norma foi questionada pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas
(DEM), por inexistência de lei que lhe confira validade, já que a Constituição
não pode ser regulamentada por decreto. A conclusão do julgamento, marcado para
ontem, foi adiado novamente porque o ministro Dias Tofolli, que estava com voto
de vista da ação, não compareceu ao plenário por problemas de saúde. Não
há prazo para que o julgamento seja retomado.
Desde a Carta Magna de 1988, que determinou
“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos”, o Decreto 4.887 foi a conquista legal mais importante dos
quilombolas. Não tramita no Congresso Nacional nenhum projeto que o
substituiria nem que dê mais garantias aos direitos desses povos. O caminho do
Legislativo tem sido no sentido contrário. “O Legislativo, nos últimos anos,
tem instigado a violação dos direitos quilombolas”, afirma Givânia Maria da
Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (Conaq). “O governo de Michel Temer talvez seja das tragédias e
ataques mais violentos aos negros depois da escravidão”, constata.
A reportagem fez um levantamento em todas as
propostas de autoria do Executivo – medidas provisórias, projetos de lei, emendas
constitucionais e decretos – desde que Temer assumiu o governo interinamente,
em 12 de maio de 2016, e concluiu que as principais conquistas alcançadas pelos
descendentes de escravos, indígenas, LGBTs, trabalhadores e pelos cidadãos
brasileiros – em relação à saúde, educação, previdência e trabalho – após a
Constituição de 1988 estão ameaçadas em prol de interesses dos empresários, do
agronegócio e de crenças religiosas.
Direitos Constitucionais ameaçados
Vinte e nove anos depois de a Constituição de 1988
garantir o direito dos quilombolas à propriedade de seus territórios, o governo
federal titulou somente 38 terras. Em 2016, apenas Tabacaria (AL) foi
titulada e, em 2017, apenas as quatro terras com decretos de
desapropriação expedidos no governo Dilma receberam os títulos até o momento.
“A nossa terra é o lugar onde vivemos em paz, onde nossos ancestrais, nossos
netos e bisnetos nasceram”, diz o quilombola Eduardo Santos. Ele está tentando
resgatar a origem rural de Mangueiras, localizada às margens da Rodovia MG-20 e
cercada pela mata do Isidoro. Lalado, como é conhecido, iniciou uma pequena
criação de porco e galinha e cultivo de cana. Ele está cultivando também
algumas hortaliças.
A
paralisação dos processos de titulação das terras quilombolas é um dos reflexos
dos cortes que o governo Temer fez no orçamento do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), que já vinha sofrendo quedas nos
governos anteriores. O total de 220 terras quilombolas homologadas hoje no
Brasil foi garantido em grande parte pelos governos estaduais. De acordo com a
Comissão Pró-Indígena de São Paulo, em sete anos o orçamento do órgão
apresentou uma queda de 94%. O valor gasto com reconhecimento e
indenização de terras quilombolas, por exemplo, caiu drasticamente, de R$ 43,95
milhões em 2014 para R$ 1,073 milhão até setembro de 2017. Os dados são do
Portal da Transparência do governo federal. Em 2015, foram gastos R$ 15,019
milhões e em 2016, R$ 20,4 milhões. Givânia afirma que o retrocesso das
políticas públicas aumentou a violência contra as comunidades. Em 2017, 14
quilombolas foram assassinados, segundo informações do Conaq. De acordo com
dados do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, em 2016 foram
oito mortes e em 2015 e 2011 duas mortes foram registradas.
Atualmente, o Incra, que é o órgão responsável
pela política fundiária, incluindo as comunidades quilombolas, está vinculado à
Casa Civil, comandada por Eliseu Padilha. O ministro já deu sinais de que está
do lado dos ruralistas. Quando ainda era deputado federal, cargo que ocupou de
1995 a 2014, Padilha defendeu a PEC 215, uma das propostas que mais assombram
as comunidades quilombolas e os povos indígenas. A medida propõe que o
Congresso Nacional passe a aprovar e ratificar a demarcação de terras
indígenas e quilombolas, hoje prerrogativas da União. “Mais que uma
derrota do governo, como apresentada por parte da mídia, a aprovação esmagadora
da Proposta de Emenda à Constituição 215/2000 (PEC215), na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, aponta para a perspectiva de
que o país possa recuperar a soberania plena sobre a ordenação física do
território nacional, atualmente, compartilhada com o movimento ambientalista-indigenista
internacional”, afirmou Padilha em publicação
no seu site, no dia 31 de março de 2012, com o nome “PEC 215
sinaliza resgate da soberania nacional”.
Índios x Temer
Assim como o Incra, a Fundação Nacional do
Índio (Funai) vem sofrendo um processo de desmonte desde o governo da
ex-presidente Dilma Rousseff (PT), intensificado no governo do presidente
Michel Temer com a redução de cargos e do orçamento. De acordo com informações
do Portal da Transparência do governo federal, no ano passado foram gastos
R$17,802 milhões com a demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção
dos povos indígenas isolados. Até setembro deste ano, apenas R$ 5,014 milhões
foram investidos nessa ação, uma queda superior a 200%. Desde que Michel Temer
assumiu a Presidência, nenhuma terra indígena foi demarcada. O desempenho do
peemedebista é considerado “o pior para os direitos dos indígenas desde a
redemocratização”. De acordo com levantamento da organização não governamental
Instituto Socioambiental (ISA), Dilma Rousseff homologou 21 áreas, Lula, 87,
FHC, 145, Itamar Franco, 16, Fernando Collor, 112 e José Sarney, 67. Futuras
demarcações estão ameaçadas, colocando em xeque as conquistas constitucionais
desses povos: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens”, diz a Constituição de 1988.
Em julho, Michel Temer assinou parecer da
Advocacia-Geral da União (AGU) determinando que só poderão ser demarcadas áreas
ocupadas pelo índios até a data da promulgação da Constituição Federal e que
áreas já demarcadas não poderão ser ampliadas. O documento, costurado com a
Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), foi publicado duas semanas antes de a
Câmara barrar a investigação de corrupção contra o presidente. Dos 263 votos
favoráveis que ele conseguiu na votação, 130 vieram da bancada ruralista. Em
reação à medida, o Ministério Público Federal publicou uma nota em que diz: “O
Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, aprovado pelo presidente Michel Temer, que
pretende ter força vinculante, põe no papel o que o atual governo faz e os que
antecederam já faziam: não demarcar, não reconhecer e não proteger”. E
acrescentou: “O parecer tem apenas um grande mérito: traz as digitais do
presidente da República e, portanto, faz dele o responsável direto da política
indigenista da sua administração”. A Advocacia-Geral da União respondeu que o
parecer “de forma alguma representa retrocesso na demarcação de terras
indígenas. Ao contrário, vai promover segurança jurídica a esta importante
política pública”.
As políticas indigenistas estão nas mãos do
general Franklimberg Ribeiro de Freitas, indicado pelo PSC para presidir a
Funai. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) recebeu a
nomeação como uma tentativa de militarização do órgão, “como nos tempos da
ditadura”. “No governo Dilma, a gente tinha muitas ameaças de retrocessos e a
gente na linha de frente fazendo pressão, evitando a aprovação dessa pauta
anti-indígena. Mas agora tudo deixou de ser uma ameaça e virou uma realidade.
Nós temos casos concretos de retrocessos que fazem com que a gente afirme que é
o pior momento da história desde a redemocratização. De ataque aos direitos, de
incitação ao ódio, ao racismo, preconceito, de conflitos fundiários”, afirmou a
líder indígena Sônia Guajajara, em conversa na Casa Pública com o
tema “índios x Temer”.
Os pataxós da Aldeia Velha, localizada em
Porto Seguro, estão sofrendo com a precariedade na saúde. Membro do conselho
local de saúde indígena, Tucurumã Pataxó, afirmou que a aldeia, que tinha três
carros para atender às demandas da saúde, hoje tem apenas um. Eles já ficaram,
no entanto, sem nenhum. Tucurumã disse ainda que o conselho local de saúde está
parado. “Já tem mais de um ano que não tem reunião do conselho. Nós não estamos
tendo recurso para fazer a reunião e eles não estão cumprindo com nossas
necessidades”, acrescentou. Os conselhos locais de saúde tem a função de
manifestar-se sobre as ações e os serviços de atenção à saúde indígena
necessários às respectivas comunidades, avaliar a execução das ações de atenção
à saúde indígena nas comunidades e encaminhar propostas aos Conselhos
Distritais de Saúde Indígena. No ano passado, o ministro da Saúde, Ricardo
Barros, publicou duas portarias, revogadas após pressão das tribos, que
acabavam com a autonomia financeira e orçamentária da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (Sesai), responsável por coordenar os conselhos locais, e dos 34
Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) na gestão de
recursos. “No ano passado, eu estive em Brasília e vi o preconceito que
eles têm. O ministro da Saúde foi à nossa aldeia, a gente tratou ele muito bem.
O cacique deu até um cocar, prestigiando ele. A gente não dá um cocar para
qualquer pessoa. Demos um cocar para ele e quando chegamos em Brasília fomos
maltratados, ele não queria atender a gente, só atendeu embaixo de pressão”,
contou Tucurumã.
Meio ambiente
Paralelamente ao desmonte das conquistas
constitucionais dos índios e quilombolas, estão os ataques ao meio ambiente,
com a extinção de áreas protegidas, o enfraquecimento do licenciamento
ambiental, tentativas de desregulamentação e liberação de agrotóxicos ainda
mais agressivos à saúde da população e ao meio ambiente, venda de terras para
estrangeiros, anistia a crimes ambientais e a dívidas do agronegócio,
legalização da grilagem de terras e a liberação de áreas de floresta para a
exploração mineral. Retrocessos que, mais uma vez, colocam Michel Temer no
período anterior a 1988 – nesse caso, na avaliação dos ambientalistas.
“Desde a redemocratização do país, nunca um
governo promoveu tantos retrocessos e de forma tão acelerada para a agenda
ambiental, fundiária e de direitos como o de Temer. De maneira autoritária, por
meio de medidas provisórias, decretos e outros atos desprovidos de debates com
a população, os avanços socioambientais conquistados pelo Brasil nas últimas
décadas – incluindo os garantidos pela Constituição – vêm sendo sumariamente
desmantelados”, publicou o movimento #Resista, articulado pelo ISA, e que já
conta com o apoio de mais de 300 organizações, movimentos e redes
ambientalistas, indígenas, indigenistas, do campo e de defesa dos direitos
humanos. De acordo com a Constituição brasileira, “a Floresta Amazônica
brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a
Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da
lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente,
inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.
A última grande cartada contra o meio
ambiente, no jogo de vai e vem de Temer com suas propostas, foi a publicação do
Decreto 9.147, que extingue a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca),
na Floresta Amazônica. A medida permitia a exploração irrestrita do
garimpo na floresta e, segundo ambientalistas e indígenas, colocaria em risco
reservas ambientais e terras indígenas. A norma foi revogada pelo presidente
depois de muita pressão social, que contou com a participação da modelo Gisele
Bundchen. A suspensão do decreto, no entanto, não significa necessariamente que
a ameaça acabou. Também com a ajuda da pressão da top model, o presidente vetou
a medida provisória que reduziria a Floresta Nacional do Jamanxin, no Pará, mas
depois apresentou um projeto de lei com o mesmo teor.
O movimento #Resista apontou nove medidas que
avançam no país e ameaçam o meio ambiente, as comunidades quilombolas e os
índios: o enfraquecimento do licenciamento ambiental (PL 3.729/2004 – Lei
Geral de Licenciamento); a anulação dos direitos indígenas e de seus
territórios (PEC 215/2000 – acaba com demarcação de Terras Indígenas (TIs)
e PEC 132/2015 – indenização a ocupantes de TIs); a venda de terras
para estrangeiros (PL 2289/2007 – PL 4059/2012); a redução das áreas
protegidas e Unidades de Conservação (UCs) (MP 756/2016 e MP 758/2016 –
Redução de UCs da Amazônia no Pará); a liberação de agrotóxicos (PL
6299/2002 – PL do Veneno e PL 34/2015 – Rotulagem de
Transgênicos); a facilitação da grilagem de terras, ocupação de terras públicas
de alto valor ambiental e fim do conceito de função social da terra (MP
759/2016); o ataque a direitos trabalhistas de trabalhadores do campo (PL
6422/2016 – Regula normas do trabalho rural, PEC 287/2016 –
Reforma previdenciária e PLS 432/2013 – Altera o conceito de trabalho
escravo); o ataque a direitos de populações ribeirinhas e quilombolas (MP
759/2016 e PL 3.729/2004); a flexibilização das regras de mineração
(PL 37/2011 – Código de Mineração).
As nove medidas são pautas, principalmente,
das bancadas ruralista e dos empresários. Eles apoiaram o impeachment da
presidente Dilma Rousseff e, logo quando Temer assumiu o governo, levaram suas
reivindicações ao presidente. Pelo monitoramento da Confederação Nacional da
Indústria (CNI), das 36 propostas apresentadas, 29 avançaram. Já os ruralistas
reivindicaram 19 medidas (13 foram atendidas). De acordo com levantamento
feito pelo jornal Folha de S.Paulo, publicado
em setembro, a agenda de Temer mostra que, em 16 meses de mandato, ele se
encontrou com representantes de 42 empresas, cinco vezes com a bancada
ruralista e sete com entidades e líderes evangélicos. Na outra ponta, ele teve
seis reuniões com centrais sindicais e nenhuma com movimentos quilombolas ou
indígenas.
Trabalhadores
A última demanda dos ruralistas acatada por
Michel Temer, às vésperas da votação da denúncia contra ele, foi a mudança no
conceito de trabalho escravo. Na última segunda-feira, o Ministério do
Trabalho, comandado por Ronaldo Nogueira (PTB-RS), publicou uma portaria, de
número 1.129/2017, que retira as condições degradantes e a jornada
exaustiva de trabalho como situações que configuram situação análoga à
escravidão. Com a nova regra, o trabalho escravo é definido pelos seguintes
pontos: submissão sob ameaça de punição; restrição de transporte para
reter trabalhador no local de trabalho; uso de segurança armada para reter
trabalhador; retenção da documentação pessoal. Além disso, a portaria
determina que só o ministro pode incluir os empregadores na lista suja, tirando
essa decisão das mãos dos técnicos da pasta. A lista
divulgada pela ONG Repórter Brasil este ano traz 250 nomes
flagrados por trabalho escravo contemporâneo entre dezembro de 2014 e dezembro
de 2016. Entram nessa contagem os casos em que o poder público
caracterizou trabalho análogo ao de escravo e nos quais os empregadores tiveram
direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias.
O Ministério Público Federal e o Ministério do
Trabalho recomendaram ao governo a revogação da medida. O procurador-geral
do Trabalho em exercício, Luiz Eduardo Guimarães Bojart, alertou que
a portaria desconstrói a imagem de compromisso no combate ao trabalho escravo
conquistada internacionalmente pelo Brasil nos últimos anos. “Ela reverte a
expectativa para a construção de uma sociedade justa, digna e engajada com
o trabalho decente. Vale reafirmar que o bom empresário não usa o trabalho
escravo. A portaria atende apenas uma parcela pouco representativa do
empresariado”, disse o procurador.
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA),
que reúne deputados e senadores ruralistas, afirmou, por meio de nota, que a
norma vem ao “encontro de pautas das bancadas”. No entanto, a FPA negou que
tenha interferido na publicação da portaria. Integrante do grupo do
agronegócio, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, saiu em defesa da medida,
que, de acordo com ele, irá organizar a falta de critérios nas fiscalizações.
Pautas prioritárias da agenda da CNI de 2017,
a reforma trabalhista e a liberação da terceirização para todas as atividades
das empresas também foram consideradas perdas de direitos dos trabalhadores por
seus representantes. No início deste mês, as centrais sindicais denunciaram a
reforma trabalhista e a terceirização na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). “O objetivo das centrais
é o de expor as ações praticadas pelo Governo brasileiro que, ao impor para a
sociedade profundas mudanças sem o devido debate e aprovar leis que regridem séculos
em termos de relações laborais e garantias de direitos humanos, sucumbiu as
exigências mercadológicas de grupos financeiros em detrimento ao capital
humano”, informa a União Geral dos Trabalhadores (UGT) por meio de nota. A Pública mostrou
na reportagem “Parlamentares-patrões conduziram mudanças
trabalhistas” que a maioria de parlamentares que aprovaram as leis são
empresários e/ou representantes de entidades patronais.
Saúde
“O sistema de saúde pública não está recebendo
o mesmo entusiasmo que recebia antes. A construção do SUS está ficando a
desejar nesse período agora”, afirmou Ivo de Oliveira Lopes, diretor do
Hospital Sofia Feldman. Referência nacional em parto humanizado, a maior
maternidade do país está correndo o risco de fechar as portas por falta de
recursos. O Sofia Feldman, localizado em Belo Horizonte, atende 100% pelo
Sistema Único de Saúde (SUS). A receita conta com R$ 4,5 milhões mensais, e
cerca de 80% são referentes a repasses da União e o restante vem do governo de
Minas. Desde 2013, não há reajuste nos repasses do governo federal. “As
perdas financeiras acarretam todas as outras perdas de direito à cidadania.
Quando você nega o acesso, quando diz que não tem vaga, isso é um crime contra
a cidadania e com a própria Constituição”, observou Ivo.
A falta de recursos reflete no dia a dia dos
trabalhadores. A obstetra Krisley Castro Almeida contou que faltam insumos,
principalmente na CTI neonatal. “A gente está em um momento político de muito
retrocesso no nosso país, e o que estamos passando no Sofia, apesar da gente
trazer aqui hoje um problema pontual, faz parte de um problema geral do Brasil,
que é de tentativa de enfraquecer o poder e a capacidade do SUS de garantir
acesso e recursos gratuitos”, diz a médica, que participou de manifestação para
salvar o Sofia, no dia 10 de outubro, na praça da Liberdade, na capital
mineira.
De acordo com o presidente do Conselho
Nacional de Saúde, Ronald dos Santos, a promulgação da Emenda Constitucional
95/2016 foi o grande golpe deste governo no SUS. “Ela impede o SUS de enfrentar
o seu principal desafio, que é o subfinanciamento”, destaca. A norma determina
que, a partir de 2018, as despesas federais só poderão aumentar de acordo com a
inflação acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA). Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, mostrou que o SUS perderá até R$
743 bilhões.
“Defender o SUS é defender a democracia.
Defender a democracia é defender o SUS”, diz Ronald, parafraseando Sérgio
Auroca, médico sanitarista que liderou a 8ª Conferência Nacional de Saúde,
realizada em março de 1986 em Brasília. Durante o encontro, Auroca disse que
“democracia é saúde”. A conferência representou um marco na história do SUS. O
relatório final do encontro serviu de subsídio para os deputados
constituintes elaborarem o artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”.
Em vez de aumentar os recursos
do SUS, a proposta apresentada pelo governo foi criar planos de saúde
“acessíveis”. O ministro da saúde, Ricardo Barros, que recebeu doações
eleitorais, em 2014, do presidente da administradora de planos de saúde
Aliança, Elon Gomes de Almeida, instituiu em agosto do ano passado um
grupo de trabalho para discutir essa proposta. O objetivo, de acordo com ele,
seria aliviar os gastos do governo com o financiamento do SUS. Para o
presidente do CNS, a real intenção é caminhar para a privatização da saúde no
Brasil, desresponsabilizando o governo de garantir o direito à saúde. “A
população brasileira já paga altíssimas cargas tributárias; além disso, saúde é
um princípio constitucional, é dever do Estado”, criticou o presidente nacional
da OAB, Claudio Lamachia, em audiência pública realizada pela entidade para
discutir o tema.
Educação
A ameaça da privatização também ronda a
educação brasileira. De acordo com a Consultoria de Orçamento e Fiscalização
Financeira da Câmara dos Deputados, R$ 24 bilhões poderão deixar de ser
investidos por ano na educação com a emenda constitucional que limitou os
gastos públicos. O coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, Daniel Cara, avalia que, pela primeira vez desde a Constituição de
1988, o país está andando para trás. “Nunca alcançamos estratégias para
garantir educação de qualidade para todos, mas estávamos avançando. Agora as
demandas da educação estão estagnadas com a redução de investimentos, vai haver
retrações”, prevê. Cara observa, no entanto, que o setor começou a sofrer com
os cortes orçamentários desde a entrada de Joaquim Levy no Ministério da
Fazenda, durante o governo Dilma.
As universidades federais já estão sofrendo na
carne os cortes orçamentários. Em agosto, a Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) publicou uma
nota para denunciar o desmonte das universidades brasileiras . “O orçamento de
2017 já representou corte significativo em relação ao de 2016 (6,74% nominal na
matriz de custeio, 10% no programa de expansão Reuni, 40,1% em capital, 3,15%
do Programa Nacional de Assistência Estudantil e mais 6,28% de inflação no
período)”, diz o documento, que acrescenta: “Até o momento foram liberados
apenas 75% do orçamento de custeio e 45% do orçamento de capital. Para manter o
funcionamento mínimo das instituições é indispensável a liberação de 100% de
ambos os limites, uma vez que já estamos absorvendo fortes perdas orçamentárias
como indicado acima”. A conjuntura apresentada para 2018 também não é
favorável.
Como se não bastasse cortar investimentos, o
governo do presidente Michel Temer vetou o artigo da Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) que incluía, dentre as prioridades para 2018, o cumprimento
de metas previstas pelo Plano Nacional de Educação (PNE). A justificativa foi a
de que a medida restringiria a liberdade do Executivo de alocar recursos para a
implementação das políticas públicas e reduziria a flexibilidade na priorização
das despesas discriminatórias em caso de necessidade de ajustes previstos na
Lei de Responsabilidade Fiscal “colocando em risco a meta fiscal”. Um balanço
do Observatório do PNE divulgado em junho mostrou que após três anos de
vigência apenas 20% das metas e estratégias que deveriam ter sido cumpridas até
2017 foram alcançadas total ou parcialmente.
LGBTs
“Todos são iguais perante a Lei, sem distinção
de qualquer natureza.” É o que determina a Constituição brasileira. No entanto,
para os cidadãos LGBTs, esse direito está se distanciando cada vez mais da
realidade. O governo do presidente Michel Temer reduziu para zero os repasses
federais aos programas específicos de defesa da comunidade LGBT. A presidenta
da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais, Symmy
Larrat, observa que os investimentos já eram baixos. “Nós nos encontramos em
uma situação muito frágil porque não existe legislação voltada para a gente,
apenas portarias e decretos”, destacou.
Nem mesmo a Constituição de 1988 trouxe
direitos direcionados aos LGBTs. Na época, houve uma resistência dos parlamentares
em acatar as propostas do Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). “Se alguém
tem essa condição, se alguém é homossexual, que assuma sua condição de
homossexual, mas não que a Constituição venha a dar garantia a esse tipo de
comportamento que para mim é considerado um comportamento anormal”, afirmou o
constituinte Salatiel Carvalho, que recebeu apoio dos colegas. “A fala do
constituinte Salatiel Carvalho pode ser tida com um bom resumo da argumentação
geral dos opositores conservadores de ontem e de hoje no tocante à proteção dos
homossexuais de outrora e dos atuais LGBTs”, conclui o mestrando em ciências
políticas Eduardo Martins de Azevedo Vilalon em artigo sobre o
movimento homossexual brasileiro na Constituinte de 1987-1988.
Todas as mudanças nas leis trabalhistas, no
debate sobre a educação e até mesmo na reforma política afetam os LGBTs, de
acordo com Symmy. “Nós já temos mais dificuldade de conseguir emprego, sofremos
assédio diariamente e o debate na educação, então!”, exclamou Symmy. Em setembro
do ano passado, o Ministério da Educação retirou da Base Nacional Comum
Curricular todas as menções às expressões “identidade de gênero” e “orientação
sexual”. O documento servirá de referência sobre o que deve ser ensinado nas
escolas públicas e privadas do país. A alteração no texto ameaça o debate sobre
identidade de gênero e sexualidade nas instituições de ensino. O MEC justificou
que a mudança foi feita para evitar a redundância e que a supressão não
alterava os pressupostos da Base. O reflexo da falta de política pública,
alinhada a pautas conservadoras, aparece nos dados de violência contra os gays,
lésbicas, travestis e transexuais. De acordo com a ONG Grupo Gay da Bahia, até
o dia 20 de setembro, 277 homicídios foram registrados neste ano. É a maior
média de assassinatos desde que os dados passaram a ser contabilizados pela
entidade baiana, em 1980.
O americano Shane Landry passeava abraçado com
seu amigo no centro de Belo Horizonte quando foram abordados por três jovens
que perguntaram: “Por que vocês estão felizes?”. Antes de eles entenderem o que
estava acontecendo, os rapazes puxaram seu amigo pelo colarinho e começaram a
bater neles. Shane caiu no chão, quebrou o braço. Seu amigo conseguiu levantar
e parar um carro. No dia seguinte, os dois foram registrar o boletim de
ocorrência, mas o policial disse que aquilo não ia dar em nada.
“Foi pior ser agredido por homofobia do que se
fosse um assalto. A sensação de que você não pode fazer nada é o que me
indigna. Isso porque sou branco, de classe média. Imagina o que acontece com a
população mais pobre. Como vamos mudar isso se o sistema não funciona?”,
questionou. Para Shane, o aumento da homofobia no Brasil tem a ver com a onda
de conservadorismo. “Eu acho que as pessoas sempre foram muito preconceituosas,
mas agora elas estão perdendo o medo de se manifestar. Antes, exigia um temor
das consequências sociais, um constrangimento de ser julgado”, acrescentou. (Agência Pública)