É no simbólico povoado do Muquém,
comunidade de descendentes quilombolas, localizada no município de União dos
Palmares, onde são criadas obras de grande e expressivo valor artístico. Nas
mãos de Irinéia Rosa Nunes da Silva, a Dona Irinéia, 68 anos, o barro
avermelhado vira cabeças, vasos, panelas e se transformam em histórias de lutas
e conquistas dos moradores dos Quilombos dos Palmares.
Mestra artesã do Patrimônio Vivo de Alagoas, desde 2005, Dona Irinéia é
considerada uma das maiores ceramistas do Estado. Os traços quilombolas de sua
arte não negam a ancestralidade da artista, que usa apenas barro, lenha e
talento para criar suas peças.
Aos vinte anos, Irinéia começou a ajudar sua mãe a moldar panelas de barro para
colaborar no sustento da família. Mais tarde, iniciou a produção de peças para
fiéis pagarem promessas, em Juazeiro, no Ceará. Para Dona Irinéia foram essas
encomendas que fizeram sua “imaginação acontecer”, quando passou a moldar o
barro com mais criatividade. “Depois que eu descobri minha arte acabou meu
sofrimento”, disse.
Ao lado de seu marido, Antonio Nunes, o Toinho, ela encontrou novas
possibilidades para o trabalho com o barro. Os vasos e panelas passaram a ser
substituídos pelas famosas esculturas, hoje conhecidas em todo país e até
internacionalmente.
“Ele também mexia com barro quando era jovem. O pai de Toinho fazia telha e ele
ajudava no acabamento. Depois que a gente se casou ele começou a ir buscar
barro ali no barreiro e a gente começou a fazer algumas coisas além de panela e
jarro. É que o povo encomendava mão de barro, cabeça e outras partes do corpo
pra poder pagar promessa. E a gente fazia tudo”, explicou a artesã.
A fabricação de artefatos de cerâmica reflete um modo de fazer tradicional da
comunidade que produz e vende essas louças utilitárias há gerações. Dona
Irinéia é mãe de 11 filhos. Os filhos e uma cunhada também ajudam na produção
das peças. Em virtude das dificuldades físicas próprias da idade, a ceramista
repassou algumas técnicas de produção para os familiares que auxiliam com a
confecção da conchinha e do nariz, enquanto D. Irinéia molda as demais partes
das obras.
O processo para o trato com a matéria-prima é feito de forma totalmente
artesanal: retiram o barro dos barreiros, pisoteiam, amassam, moldam e queimam
as peças que, sem nenhum tipo de pintura, ganham uma coloração avermelhada
natural.
Os objetos criados são bastante peculiares, frutos das memórias e vivências de
Dona irinéia. As cabeças negras são as que têm mais encomenda, “o pessoal gosta
de botar nas piscinas, em pousadas”, observa Irinéia. As cabeças negras que
trazem lábios, nariz, olhos, orelhas e cabelos delineados de forma sensível e
expressiva. As peças são produzidas de diversos tamanhos, ornamentações e
penteados. A pequena escultura com pessoas em cima de uma jaqueira se tornou um
clássico, devido ao seu valor histórico. Em 2010, palmarinos do Muquém
enfrentaram uma enchente do rio Mundaú e tiveram que subir na árvore para
sobreviver. Mônica, filha da artesã, foi uma das pessoas salvas graças aos
galhos da árvore redentora.
Em 2004, Dona Irinéia foi finalista do Prêmio Unesco de Artesanato da América
Latina e Caribe. Em seu ateliê, nos fundos de casa, a artesã conta que envia as
peças para São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Em 2015 esculturas da
artesã foram levadas para Itália, a convite da Expo Milão, uma feira que reúne
obras de arte de 140 países.
Em 2013, Dona Irinéia Nunes virou personagem do livro A menina de barro, da
escritora Gianinna Bernardes, com ilustrações do alagoano Pablo Perez Sanches.
A obra conta a história de uma família que morava às margens do rio Mundaú, no
interior de Alagoas, e vivia a partir da criação de objetos feitos do barro
colhido na beira do rio. Certo dia, a chuva foi tanta que fez o rio
transbordar, carregando tudo que havia pela frente. Para se salvar, a família
teve que deixar quase tudo para trás, inclusive as peças de barro feitas com
tanto amor. Durante a enchente, o ateliê de D. Irinéia ficou debaixo de água, e
cerca de duas mil peças de cerâmica se perderam na enxurrada.
Dona Irinéia carrega com orgulho o reconhecimento da arte que aprendeu com sua
mãe, que vai além das fronteiras da comunidade isolada de quilombola. Ela usa
sua multiplicidade de talentos para dar vida ao barro. É através dele e a
partir de seu saber popular que modela sua própria identidade, projetando a
imagem de seu povo no mundo. É do barro, da argila, da terra molhada com água
que a arte e a criatividade de dona Irinéia vão se espalhando e ganhando o
mundo. “Quando estou longe do barro não estou feliz. Ele é minha vida”.
Registro do Patrimônio Vivo
É considerada Patrimônio Vivo de Alagoas a pessoa que detenha os
conhecimentos e técnicas necessárias para a preservação dos aspectos da cultura
tradicional ou popular de uma comunidade.
Os mestres devem ter os trabalhos estabelecidos no estado há mais de 20 anos,
repassando às novas gerações os saberes relacionados a danças e folguedos,
literatura oral e/ou escrita, gastronomia, música, teatro, artesanato, dentre
outras práticas da cultura popular que vivenciam.
Atualmente, quarenta mestres da cultura popular alagoana fazem parte do
Registro do Patrimônio Vivo. O RPV foi estabelecido através da Lei Estadual nº
6.513/04, posteriormente alterada pela Lei nº 7.172/10. Os contemplados
recebem, mensalmente, uma bolsa no valor de um salário mínimo e meio, concedida
pelo Governo de Alagoas, através da Secretaria de Estado da Cultura. <>
Agência Alagoas //