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camilla
Com a música clássica preferida do querido defunto, o caixão começa a descer num buraco misterioso e eu não consigo segurar a vontade de chorar. O momento propicia uma despedida simbólica. Penso nos bons momentos que tivemos, no que ele representava para mim, na vida que construiu e na família que ficava. Mentalizo imagens dele rindo, fazendo sua atividade preferida, cavalgar, tentando memorizá-las pois sei que nunca mais as verei. E hoje aquele rosto está um pouco apagado, mas esse momento da despedida, não. Foi a primeira cerimônia de cremação que presenciei.
Dez anos depois, voltei ao Cemitério e Crematório Horto da Paz para conhecer o outro lado daquele
elevador que levou o caixão simbolicamente para “de baixo da terra” como
ocorreria no sepultamento, mas nesse caso é o subsolo do prédio principal do
cemitério. Lembro de achar que o corpo sumia naquele buraco no chão e ia direto
para o forno, ser cremado. Esse pensamento me sensibilizou porque quando eu
saia do cemitério, imaginava que naquele momento, o corpo que abrigou por
tantos anos aquela pessoa amada, estava rapidamente entrando em combustão.
Mas não tem nada de imediato
e rápido no processo, e ele funciona de acordo com etapas, obedecendo normas
com uma preocupação pela segurança e eficiência como ocorre em qualquer
empresa. Após a cerimônia, o corpo entra na programação do Horto da Paz,
podendo levar até dez dias para ser cremado. Ele é mantido refrigerado a 4°C
numa câmara fria. O tempo mínimo de espera é de 24h a partir da data do óbito,
que é um período para contestação judicial ou verificação de erros médicos.
Assim que chega, o corpo recebe uma pastilha de material refratário, com uma numeração conectada ao nome do defunto pelo sistema, que servirá para identificar as cinzas ao corpo e garantir que não haja trocas.
Eu achava que se cremava mais de um corpo num mesmo local. No crematório Horto da Paz, o forno é destinado para apenas um corpo e acabaram de comprar outro devido ao aumento da demanda. Reinaldo Dantas, administrador do local, me falou que o crematório Vila Alpina costumava trabalhar com um forno para dois corpos, mas hoje em dia passaram para o individual também. O Vila Alpina pertence ao Serviço Funerário de São Paulo, da Prefeitura de São Paulo, que mantém o monopólio de cremação na cidade. Por isso, o Horto da Paz instalou-se em Itapecerica da Serra.
O corpo deve ser cremado junto com um caixão, chamado de ecológico por não ter químicas, como verniz e tintas. Retira-se o vidro, as alças e os metais. O Crematório Vila Alpina indica nas perguntas mais frequentes de seu site, que o caixão não é necessário para a cremação, apenas um recipiente de madeira ou cartão.
Após aproximadamente duas horas, do corpo que entrou só restou pó, ossos calcificados e bugigangas tecnológicas como pinos de titânio e próteses ortopédicas, que serão entregues à família num saco diferente do das cinzas. Os ossos são triturados numa máquina que me lembrou uma ferramenta de fazer bolo, não sei que raios de associação eu fiz. E não me sai da cabeça a imagem de um osso sendo quebrado como se fosse giz, que foi a analogia feita por Reinaldo. O clic de um giz partindo é muito específico e me pareceu interessante a ideia de que um osso, algo que só se quebraria com um impacto muito grande, virasse um giz após a cremação, transformado em osso calcificado. As cinzas recebidas pelas famílias são esses ossos triturados.
O forno é pré-aquecido a 657°C graus. Ele tem duas câmaras. Os gases produzidos na primeira câmara passam para a segunda para uma requeima. Essa segunda câmara trabalha a 900°C graus. Segundo Reinaldo, é isso que garante que o que sai na chaminé não polui o meio ambiente. Seu resultado seria de 20% a 30% menos poluente do que um automóvel andando a 40 km por hora.
Dentro do forno, no canto direito superior (numa das fotos da galeria abaixo pode-se ver um buraco), é onde fica o queimador. Ele recebe uma chama a gás como se fosse um maçarico e regula a temperatura conforme a necessidade. Quando o corpo e o caixão entram em combustão, o queimador é desligado. O corpo se queima por ter carbono em sua composição e existem entradas de ar nas laterais que servem para alimentar esse processo. O queimador será acionado novamente quando já tiver consumido tudo que for combustível. O primeiro processo da desintegração do corpo é o da desidratação, já que somos 80% água. O segundo processo é a cremação propriamente dita.
O saco com as cinzas é colocado na urna de escolha da família. A urna não é obrigatória por lei, mas um costume já bem enraizado. São várias opções: a família pode levar a urna embora, pode guardar numa sepultura no próprio cemitério, adquirir uma urna biodegradável, de fibra de coco, e plantá-la com uma árvore de preferência. Há um bosque no Horto da Paz com essa finalidade. Também é possível usar uma urna de argila crua para jogar na água, como o mar e a cachoeira, porque ela afunda e se dissolve na água. Há urnas específicas para serem levadas para fora do país, segundo normas da polícia federal.
Formas alternativas para o destino das cinzas foram exploradas em posts anteriores. Veja indicações de leitura abaixo. O Cemitério e Crematório Horto da Paz disponibiliza serviços terceirizados pouco conhecidos. A empresa Brilho Infinito transforma cinzas em diamantes e a artista plástica Claudia Eleutério pinta quadros misturando cinzas à tinta, chamada de arte picto-crematória. O quadro é de escolha do futuro falecido ou dos familiares. Também podem ser feitas esculturas. Ainda há a possibilidade de pingentes e anéis com espaços “porta-cinzas” e separar as cinzas em um conjunto de miniaturas de urnas para distribuir entre os membros da família.
O crematório da Vila Alpina
se considera um dos maiores do mundo e pioneiro da América Latina. Crema-se, em
média, 25 corpos por dia e o custo parte
de R$ 3.950, no plano mais barato, e R$ 6.850, no plano mais caro. Como o Horto
da Paz, também dão o prazo de 10 dias para a entrega das cinzas às famílias. O
Serviço Funerário do Município de São Paulo indica quando a cremação pode
ocorrer em seu site:
– O falecido houver
manifestado, em vida, este desejo através de “Declaração de Vontade”,
devidamente registrada em cartório.
– A autorização para cremação, de quem não optou por ela em vida, é concedida por um parente de primeiro grau mais próximo, na ordem sucessória (cônjuge, ascendente, descendente e irmãos maiores de 18 anos) e testemunhada por duas pessoas, além da apresentação do atestado de óbito assinado por dois médicos. Parentes de 2.º grau não podem autorizar a cremação.
-No caso de morte violenta, a
cremação só ocorrerá mediante autorização judicial. Para isso são necessários:
1) Atestado assinado por um
médico legista;
2) Boletim de Ocorrência;
3) Declaração de
um delegado de polícia manifestando não se opor à cremação em questão;
4) Atestado de Óbito assinado
por dois médicos.
Essa declaração de vontade,
em sua forma mais abrangente, também é chamada de “Testamento Vital”, assunto
bem explorado aqui no blog (veja sugestões de leitura abaixo).
Tanto o Horto da Paz quanto o
Vila Alpina me informaram que a cremação acaba se tornando mais vantajosa
financeiramente do que o sepultamento. Inicialmente, ela parece mais cara, mas
o sepultamento presume taxas adicionais que a cremação não tem, como a taxa de
conservação mensal e os custos com a retirada do corpo na exumação (com três
anos no Vila Alpina).
A cremação parece uma
tendência inevitável. Hoje em dia é muito difícil abrir um cemitério
convencional, devido à falta de espaço e às leis ambientais. Países que lidam
com essa questão, como o Japão, já consolidaram a cremação como tradição
predominante. O Horto da Paz indicou um aumento de 36% na quantidade de
cremação nos últimos três anos. E o Vila Alpina afirma que desde janeiro de
2008, o número de cremações dobrou em São Paulo.