Um documento preservado fora do Brasil, no acervo da biblioteca da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, pode ajudar a revelar aspectos pouco conhecidos da história da população negra em liberdade durante o período colonial. Trata-se de um mapa manuscrito original que aponta a localização de três quilombos na região do Quilombo dos Palmares, entre Pernambuco e Alagoas, e que agora servirá de base para pesquisas arqueológicas.
O material é a versão original do Brasilia Qua Parte Paret Belgis, elaborado pelo matemático e naturalista George Marggraf. O conjunto reúne nove mapas das capitanias e câmaras do Brasil Neerlandês, período marcado pela ocupação holandesa no Nordeste, entre 1630 e 1654. O documento foi localizado pelo cartógrafo histórico Levy Pereira e permanece preservado em Harvard desde o século 19.
A partir desse achado, um grupo de pesquisadores formado por arqueólogos, geógrafos, historiadores e antropólogos da Universidade Federal de Alagoas, no Campus Sertão, e da Universidade Federal Rural de Pernambuco passou a utilizar o mapa como referência para localizar os que seriam os quilombos mais antigos da região de Palmares. O trabalho conta com financiamento da Fundação Cultural Palmares e autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
As escavações arqueológicas estão previstas para ocorrer em áreas de Pernambuco e Alagoas e podem revelar vestígios materiais da vida cotidiana em uma das mais duradouras e organizadas comunidades quilombolas do Brasil colonial. A expectativa é compreender como viviam os negros que escaparam da escravidão e construíram formas próprias de organização social, econômica e cultural.
Fundado no final do século 16 e instalado na Serra da Barriga, em União dos Palmares, o Quilombo dos Palmares resistiu por quase um século a ataques de forças luso-brasileiras, holandesas e bandeirantes. Embora a Serra da Barriga seja reconhecida como o último núcleo do quilombo, documentos históricos indicavam a existência de outros povoados anteriores na região, favorecida pela fertilidade do solo e pela abundância de recursos naturais.
Relatos do comandante holandês Johan Blaer, que liderou uma expedição contra quilombos em 1645, mencionavam pelo menos três comunidades próximas. No entanto, a identificação precisa desses locais sempre foi dificultada pela descrição imprecisa de rios e montanhas com nomes em desuso, além do uso de medidas aproximadas.
Segundo os pesquisadores, o mapa original de Marggraf foi decisivo para superar essas limitações. Ao ser sobreposto à cartografia atual e cruzado com imagens de satélite de alta resolução, o documento permitiu identificar elementos do relevo compatíveis com os relatos históricos. Assim, dois dos quilombos teriam estado nas áreas hoje correspondentes aos municípios de Correntes e Lagoa do Ouro, no Agreste de Pernambuco, enquanto o terceiro estaria na região de Chã Preta e União dos Palmares, em Alagoas.
As análises indicaram ainda a presença de formas geométricas no terreno, como estruturas retangulares, que podem corresponder a fossos e sistemas defensivos descritos em documentos da época. Essas áreas foram classificadas como pontos sensíveis para investigação arqueológica.
Embora a cartografia de Marggraf já fosse conhecida, os mapas divulgados ao longo dos séculos eram reproduções do original, o que gerou distorções acumuladas por sucessivas reimpressões. O material encontrado em Harvard é o manuscrito original, feito à mão pelo próprio autor, e nunca havia sido analisado diretamente por pesquisadores brasileiros até então.
De acordo com os arqueólogos envolvidos, muitos documentos do período holandês no Brasil foram vendidos ou levados ao exterior ao longo do século 19, o que contribuiu para o apagamento de narrativas afro-indígenas da história oficial. Apenas a partir da segunda metade do século 20 a historiografia passou a valorizar essas perspectivas.
A descoberta reacende a possibilidade de localizar outros quilombos que existiram antes ou depois de Palmares e que nunca foram escavados. Para os pesquisadores, encontrar vestígios desses locais significa ampliar a compreensão sobre a cultura material afro-brasileira em contextos de liberdade, revelando práticas agrícolas, rituais, formas de defesa, organização social e costumes funerários.
A Fundação Cultural Palmares também pretende utilizar os resultados para reconstruir uma linha do tempo do desenvolvimento dessas comunidades, destacando as estratégias de resistência e as tecnologias adotadas. A pesquisa busca demonstrar que os quilombos não eram formações improvisadas, mas sociedades complexas, organizadas e articuladas com outros grupos, incluindo populações indígenas e até pessoas brancas.
O financiamento inicial do projeto prevê um período de dezoito meses de trabalho. As primeiras etapas envolvem prospecções de superfície e abertura de sondagens, com expectativa de encontrar estruturas defensivas, vestígios de habitações, forjas, cerâmicas e possíveis áreas de sepultamento. Caso os achados se confirmem, os pesquisadores pretendem buscar novos recursos para ampliar as escavações no chamado Grande Palmares.
Além da produção científica, o projeto prevê a criação de material audiovisual com fins educativos e o envolvimento de comunidades locais, pesquisadores indígenas e negros da região. A equipe afirma que todo o trabalho será conduzido com respeito aos espaços considerados sagrados, especialmente em caso de identificação de áreas de enterramento, e que qualquer intervenção dependerá de autorização adequada.
Se confirmadas as evidências apontadas pelo mapa, a pesquisa pode abrir novos caminhos para recontar a história da resistência negra no Brasil e reforçar o papel dos quilombos como espaços de liberdade, organização e protagonismo no interior do território colonial.