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Economia
04/12/2025 10:00:00

A 'pobreza' repentina que faz com que milhões de pessoas nos EUA dependam de ajuda para não passar fome

A 'pobreza' repentina que faz com que milhões de pessoas nos EUA dependam de ajuda para não passar fome
 

Ilona Biskup sentiu constrangimento quando entrou pela primeira vez em um banco de alimentos em Miami, no Estado da Flórida. Durante 32 anos, ela trabalhou, pagou impostos e poupou para a aposentadoria, até conseguir comprar um apartamento de frente para o mar. Hoje, porém, questiona por que precisa de auxílio para conseguir comida. Há quatro meses, recorreu pela primeira vez ao Feeding South Florida, o maior banco de alimentos do sul do Estado, que fornece mantimentos grátis a um quarto da população local que não consegue custear a própria alimentação. Aos 62 anos, precisou pedir ajuda para ter acesso a produtos que talvez não pudesse comprar, apesar de já ter sido bem-sucedida financeiramente. De seu apartamento em Miami Beach, com vista panorâmica para a cidade e o oceano, ela lamenta depender de comida gratuita, dizendo que jamais imaginou precisar recorrer ao governo depois de tanto trabalho. Sua pensão por invalidez cobre apenas moradia e despesas básicas. Com renda mensal de US$ 2 mil, cerca de R$ 10,7 mil, Biskup está acima da linha oficial de pobreza dos EUA — fixada em US$ 15,65 mil anuais —, mas, mesmo assim, não consegue arcar com os custos de alimentação. Esse empobrecimento súbito veio após acontecimentos inesperados que consumiram todas as suas reservas: dois tratamentos contra o câncer drenaram o patrimônio e o diagnóstico recente de Parkinson a obrigou a usar o que restava da aposentadoria.

Biskup pertence ao amplo grupo de americanos que vivem no limite, vulneráveis a qualquer contratempo financeiro. Um estudo liderado pelo sociólogo Mark Rank mostra que quase 60% dos adultos do país passarão pelo menos um ano abaixo da linha da pobreza e 75% enfrentarão pobreza ou situação semelhante. Segundo Rank, os caminhos mais comuns rumo à pobreza nos EUA incluem perda do emprego, emergência de saúde ou separação familiar. Ele afirma que a combinação entre uma rede de proteção social frágil e a criação de empregos de baixa remuneração transforma o país em uma das nações industrializadas com maiores índices de pobreza. Uma pesquisa do Pew Research Center revelou que 27% dos americanos tiveram problemas para pagar atendimento médico no último ano, e pelo menos 20% recorreram a bancos de alimentos. Entre afro-americanos e hispano-americanos, cerca de dois terços não possuem reserva para emergências; entre brancos, esse índice é de 44%. Outro levantamento, do Conselho Nacional para o Envelhecimento e do LeadingAge LTSS da Universidade de Massachusetts, aponta que idosos com menos recursos vivem, em média, nove anos a menos que aqueles com maior patrimônio. Rank acrescenta que o estigma social em torno da pobreza agrava as dificuldades, já que muitos americanos associam a falta de recursos a falhas individuais, e não a questões estruturais.

Nascida na Polônia e cidadã americana, Biskup trabalhou como comissária de bordo nas companhias aéreas Pan Am e Delta Airlines, sempre preferindo voos longos para obter melhor remuneração. Após o casamento com um piloto e anos vivendo em Denver, mudou-se para Miami depois do divórcio, buscando recomeçar perto do mar. Em 2014, recebeu o diagnóstico de câncer de mama. Apesar de o seguro ter coberto cirurgias e tratamentos, a doença provocou gastos inesperados e um desgaste mental profundo. Passou um ano em quimioterapia e radioterapia, depois enfrentou uma mastectomia dupla com reconstrução. Embora tivesse confiança na equipe médica, relata que sua saúde mental entrou em colapso e levou mais de um ano para se recuperar. Em 2019, surgiu um segundo tumor, desta vez no pâncreas, que exigiu uma cirurgia extensa. Suas reservas se esgotaram após os tratamentos, e a aposentadoria antecipada durante a pandemia a afastou do trabalho antes do que esperava. Nos últimos anos, tentou reorganizar sua vida, até perceber sintomas como tremores e rigidez; seis meses atrás, veio a confirmação do mal de Parkinson.

Atualmente, Biskup integra os 42 milhões de americanos atendidos pelo SNAP, o Programa de Assistência Nutricional Suplementar, equivalente ao Bolsa Família no Brasil no que diz respeito ao apoio alimentar. Os beneficiários recebem, em média, US$ 187 mensais, valor que varia conforme a situação de cada pessoa. Ela recebe US$ 225 por mês. Para participar, o governo exige que o solicitante trabalhe pelo menos 30 horas semanais, salvo exceções — como estudantes, cuidadores de crianças pequenas ou pessoas com incapacidade, como no seu caso. O programa cobre cerca de um em cada oito americanos. Entretanto, durante o fechamento do governo federal, que durou 43 dias, o presidente Donald Trump suspendeu os pagamentos do SNAP em novembro. Apesar de uma decisão judicial inicial contra a medida, a Suprema Corte confirmou o congelamento dias antes da reabertura do governo. À espera do novo depósito, Biskup foi ao Feeding South Florida para complementar sua alimentação com itens frescos e enlatados. Ela escolheu frutas, legumes, arroz, macarrão, cereais e outros produtos, sempre checando informações nutricionais com um aplicativo, hábito que adotou após enfrentar o câncer.

Segundo o presidente do Feeding South Florida, Paco Vélez, a suspensão dos pagamentos fez crescer de maneira brusca a procura por alimentos gratuitos. Ele afirma que as famílias temem não conseguir pagar comida nem outras despesas. Nos 12 meses anteriores a setembro, o preço dos alimentos subiu 2,7%, com aumentos mais acentuados em itens como café, carne moída e banana. Tarifas de importação e ações contra imigrantes sem documentos que trabalham na agricultura elevaram ainda mais os custos, explica o economista David Ortega. No sul da Flórida, mais de 967 mil pessoas dependem desse tipo de ajuda. Jessica Benites, chefe de pessoal da organização, afirma que o número de famílias atendidas dobrou após o fechamento do governo e chegou a 120 por dia na primeira semana de novembro. Os produtos são doados por agricultores, supermercados e grandes empresas, com contribuições financeiras que vão de milhares a centenas de milhares de dólares. Apesar da retomada do governo federal, o banco de alimentos segue preparado para ampliar horários e equipes, contando com voluntários que organizam e inspecionam os produtos.

Com o depósito recente do SNAP, Biskup fez compras em um atacarejo, adquirindo quantidades maiores para aproveitar ao máximo o benefício. Também frequenta um centro comunitário em Miami Beach, onde almoça gratuitamente após praticar Tai Chi ou Qi Gong, exercícios que ajudam a lidar com os efeitos do Parkinson. Determinada a manter o padrão de vida pelo qual trabalhou, ela reajusta hábitos e rotinas enquanto enfrenta limitações impostas pela saúde. De sua varanda, onde admira a cidade e o mar, afirma que aquele apartamento é seu abrigo, o lugar onde superou dois cânceres e onde pretende enfrentar tudo o que o Parkinson ainda lhe reserva.