Após mais de dez anos de guerra civil, diversas cidades sírias buscam se reconstruir por meio de campanhas de arrecadação que alegam ter reunido cerca de 500 milhões de dólares (R$ 2,7 bilhões) desde agosto. Embora a iniciativa traga um sentimento de alívio e esperança para parte da população, crescem as dúvidas sobre a procedência do dinheiro e a transparência na sua utilização.
Em locais destruídos como Idlib, no norte do país, campanhas de financiamento coletivo alcançaram valores impressionantes. Em apenas um dia, as doações chegaram a 208 milhões de dólares (R$ 1,2 bilhão), superando em muito o ritmo de arrecadações internacionais — como o da então candidata à presidência dos EUA, Kamala Harris, que angariou 47 milhões de dólares (R$ 252 milhões) em igual período durante sua campanha de 2024.
Os organizadores afirmam que o propósito é “restaurar a vida” em regiões sem escolas, hospitais ou infraestrutura básica. “Essas campanhas nasceram do espírito de solidariedade do povo sírio”, explicou Fadel al-Akl, integrante do comitê responsável em Idlib.
As contribuições variaram de 4 a 5 mil dólares (R$ 21 a R$ 27 mil), totalizando cerca de 350 mil dólares (R$ 1,9 milhão). Grandes empresários também se uniram à causa. Mustafa al-Farra, de Maarat al-Numan, doou 250 mil dólares (R$ 1,3 milhão), descrevendo sua ação como um gesto de patriotismo. O maior doador foi o bilionário Ghassan Aboud, sírio residente nos Emirados Árabes Unidos, que contribuiu com 55 milhões de dólares (R$ 296 milhões).
Apesar do otimismo, há ceticismo. O analista Haid Haid, do centro britânico Chatham House, destacou que famílias ligadas ao antigo regime de Bashar al-Assad, como os Hamsho, também fizeram doações expressivas. Para ele, o envolvimento desses grupos reacende o debate sobre o uso político das campanhas e a falta de clareza na administração dos recursos sob o novo governo.
No sul do país, em Sweida, as iniciativas enfrentaram rejeição. Segundo o agricultor Salman al-Shawfi, eventos de arrecadação chegaram a ser realizados em locais de luto, com fogos de artifício, o que ofendeu moradores que perderam parentes na guerra. “Foi uma encenação sem sentido”, lamentou.
Outro ponto controverso é que parte dos valores divulgados como novas doações pode, na verdade, corresponder a verbas já previstas em orçamentos de projetos anteriores. Críticos afirmam que ministérios e instituições internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Sociedade Médica Sírio-Americana (SAMS), teriam incluído investimentos existentes nas cifras das campanhas.
O Pnud informou que seus 14 milhões de dólares (R$ 75 milhões) dizem respeito a projetos em andamento, enquanto a SAMS explicou que os 11 milhões de dólares (R$ 59 milhões) destinam-se à construção de hospitais e centros de saúde. Ambas as organizações, no entanto, afirmam apoiar as campanhas por acreditarem que elas fortalecem a confiança e a sensação de normalidade no país.
Mesmo assim, ainda há incerteza sobre como os recursos serão efetivamente aplicados. Promessas de divulgação detalhada das doações e de seus destinos não foram cumpridas integralmente. Segundo Fadel al-Akl, em Idlib, cerca de 20% do dinheiro foi entregue em espécie, 40% convertido em projetos e o restante transferido via bancos.
Apesar da mobilização e do entusiasmo popular, os valores arrecadados representam apenas uma fração das necessidades reais. O Banco Mundial estima que a reconstrução completa da Síria exigirá aproximadamente 216 bilhões de dólares (R$ 1,2 trilhão), montante muito superior ao obtido até agora pelas campanhas.