Em 11 de dezembro de 1964, a tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas, emNova York, se transformou em palco de duras críticas ao país-sede. O argentino Ernesto Che Guevara (1928-1967), então ministro da Indústria de Cuba, discursou diante de líderes de todo o mundo contra o imperialismo norte-americano e ganhou projeção como uma figura de alcance internacional.
Para o jornalista e sociólogo Ignacio Ramonet, aquele momento marcou o ponto em que Guevara passou a ser visto como uma espécie de “embaixador do Terceiro Mundo”.
No discurso, Guevara acusou os Estados Unidos de tentar transformar a ONU em um simples torneio de discursos, quando deveria estar comprometida em resolver os graves problemas da humanidade. Atacou o controle de Porto Rico pelos americanos, criticando o envio de soldados porto-riquenhos para guerras travadas pelo império, e condenou o regime de apartheid na África do Sul, além dos efeitos da colonização no continente africano. Também pediu o desarmamento nuclear e o fim do que chamou de “braço armado do imperialismo”.
Segundo ele, Cuba buscava construir o socialismo e desejava a paz, mas sem abrir mão da dignidade diante das pressões e provocações dos Estados Unidos. Guevara apresentou cinco pontos como essenciais para a paz no Caribe: a suspensão do bloqueio econômico imposto a Cuba, o fim das atividades subversivas americanas contra o regime, a interrupção dos chamados “ataques piratas” partindo de bases dos EUA e de Porto Rico, o respeito ao espaço aéreo e marítimo cubano e a devolução da base de Guantánamo.
No pronunciamento, afirmou ainda que os EUA tinham histórico de intervenções na América Latina e denunciou a repressão contra negros e latino-americanos dentro do território norte-americano. Questionou como o país poderia se apresentar como defensor da liberdade enquanto discriminava e deixava impunes os crimes contra a população negra.
O discurso de Guevara se somou a outros momentos de confronto na ONU. Fidel Castro, em 1960, fez o mais longo discurso da história da Assembleia, com 269 minutos. O soviético Nikita Khruschev protagonizou em 1960 o episódio em que teria batido um sapato na mesa em protesto. O palestino Yasser Arafat, em 1974, acusou os EUA de abastecer Israel com armas. Décadas depois, em 2006, o venezuelano Hugo Chávez chamou George W. Bush de “diabo” e disse que a tribuna ainda cheirava a enxofre após sua presença. Em 2009, Muammar Gaddafi culpou os Estados Unidos e potências ocidentais pelos conflitos desde a Segunda Guerra Mundial.
Especialistas afirmam que a diversidade de vozes faz parte da essência da ONU. Para o cientista político Leonardo Bandarra, a Assembleia é um espaço simbólico de democracia global, onde cada país tem um voto. O jurista Rubens Beçak reforça que a organização se mantém justamente por reunir países diferentes em sistemas políticos, culturas e forças militares. A socióloga Carolina Pavese destaca que a Assembleia Geral é um exercício de democracia multilateral, que garante equidade formal entre os Estados, independentemente de tamanho ou poderio militar.
O jurista Danilo Porfirio de Castro Vieira vê a ONU como um espaço de pluralidade, enquanto Enrique Natalino, do Cebrap, lembra que líderes utilizam a tribuna para dar visibilidade e legitimar suas causas no cenário internacional. Foi o caso de Arafat em 1974, quando reforçou a causa palestina. Já o historiador Victor Missiato observa que esses discursos acabam moldando visões de mundo.
No entanto, governos norte-americanos sempre demonstraram incômodo com discursos hostis feitos em território americano. O cientista político Márcio Coimbra avalia que a administração Trump, por exemplo, considera a tribuna da ONU importante para a diversidade de opiniões, mas não aceita que seja usada para legitimar regimes autoritários ou promover discursos de confronto. Para ele, a fala de Guevara em 1964 foi vista por Washington como um manifesto de antagonismo no auge da Guerra Fria.
O professor Pedro Brites, da Fundação Getúlio Vargas, lembra que até mesmo durante a Guerra Fria os EUA respeitavam o direito de líderes estrangeiros participarem das reuniões anuais da ONU, e considera preocupante que haja hoje dificuldades na concessão de vistos. Para ele, a força da Assembleia está justamente em reunir o máximo de países e garantir respeito a todas as delegações.