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Especial
11/06/2025 00:00:00

Como o Reino Unido se tornou destino para condenados pela Justiça brasileira

Como o Reino Unido se tornou destino para condenados pela Justiça brasileira

O dia 17 de maio de 2024 marcou contrastes opostos entre Brasil e Reino Unido. Em Londres, Maurício* comemorava uma decisão judicial favorável: uma juíza britânica rejeitou o pedido de extradição apresentado pelo governo brasileiro. No Brasil, onde ele foi condenado a 14 anos de prisão por estuprar sua filha ainda criança em 2013, o clima no Ministério da Justiça era de frustração. Por razões legais, o nome verdadeiro de Maurício foi preservado, a fim de proteger a identidade da vítima conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Maurício negou a acusação e fugiu para o Reino Unido antes de cumprir sua pena. Em 2023, foi preso por autoridades britânicas, iniciando um processo de extradição que durou um ano. Ao final, a Justiça britânica recusou o pedido com base em argumentos relacionados às más condições do sistema prisional brasileiro, e ele foi libertado. Apesar disso, seu nome permanece na lista de difusão vermelha da Interpol, que reúne fugitivos procurados em 196 países.

Justiça britânica rejeita extradições com base nas condições prisionais brasileiras

De acordo com levantamento feito pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a pedido da BBC News Brasil, desde 2017 o Reino Unido recusou quatro pedidos de extradição apresentados por autoridades brasileiras sob a alegação de que os presídios no país violariam a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Em outros 13 processos, o próprio Judiciário brasileiro decidiu retirar o pedido de extradição, temendo consolidar o entendimento de que o Brasil não oferece condições mínimas para manter presos de acordo com padrões internacionais.

Embora os números não sejam grandes, autoridades brasileiras afirmam que o posicionamento britânico contrasta com o de outras nações europeias, como França e Portugal, que atendem aos pedidos do Brasil mesmo sendo signatárias da mesma convenção.

Rodrigo Sagastume, diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do MJSP, destaca que a atitude do Reino Unido prejudica tanto o Brasil quanto o próprio país europeu, ao transmitir a ideia de que se trata de um refúgio para foragidos internacionais. O Home Office britânico não respondeu aos questionamentos da BBC.

Casos exemplares mostram falhas na extradição de criminosos brasileiros

O caso de Maurício é apenas um entre outros semelhantes. Ele foi condenado por abuso sexual contra sua filha, após denúncias de familiares e investigações do Ministério Público. Mesmo com tentativas de anular o julgamento, a condenação foi confirmada em 2016. A defesa usou o argumento de que o depoimento da criança havia sido tomado na presença da mãe, com quem o acusado tinha conflitos, e que o laudo do exame de corpo de delito não foi incluído no processo. Mesmo assim, a pena foi mantida.

Durante o processo no Reino Unido, a defesa alegou que o Brasil não poderia garantir condições carcerárias mínimas, como uma cela de ao menos três metros quadrados por preso. As autoridades brasileiras indicaram um presídio na cidade onde o crime foi cometido, depois um novo local, e por fim admitiram que não havia mais instalações adequadas. Isso levou a juíza britânica a considerar que o Brasil não cumpria o artigo 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos e, portanto, decidiu pela libertação do réu.

Outro exemplo foi o do ex-policial militar Vilmair Venâncio Soares, condenado por homicídio em 2002 após matar um homem com um tiro nas costas durante uma discussão. Mesmo condenado, ele fugiu para o Reino Unido e só foi preso em 2022, vinte anos após a sentença. A tentativa de extraditá-lo falhou pelo mesmo motivo: o Brasil não conseguiu assegurar uma cela individual com condições adequadas. Assim como Maurício, Soares também foi liberado.

Sistema prisional brasileiro é questionado internacionalmente

Imagens e relatos sobre o sistema penitenciário brasileiro reforçam os argumentos das defesas. O país abriga cerca de 800 mil presos, embora tenha capacidade inferior a 400 mil vagas. Denúncias de superlotação, tortura, espancamentos, revistas humilhantes e uso abusivo de armamentos são frequentes. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), vinculado ao governo federal, reconhece que há um longo caminho para o Brasil cumprir plenamente as diretrizes internacionais de direitos humanos.

Decisões do Reino Unido contrastam com prática de outros países

Para Rodrigo Sagastume, a postura britânica em rejeitar pedidos de extradição por causa das prisões brasileiras é incomum. Segundo ele, outros países que também assinaram a Convenção Europeia, como França e Portugal, não apresentam resistência semelhante. Três fatores explicariam essa tendência no Reino Unido: a boa condição financeira dos brasileiros que conseguem contratar advogados especializados, o sistema jurídico baseado em Common Law, que valoriza precedentes, e a ausência de uma cobrança firme do governo brasileiro por reciprocidade nos acordos de extradição.

Sagastume reconhece os problemas no sistema prisional, mas afirma que nem todas as unidades são degradantes, como os casos sugerem. Para ele, considerar o sistema penitenciário brasileiro completamente colapsado seria um exagero.

Extradições ganham destaque com caso de Carla Zambelli

O tema voltou ao centro das discussões após a deputada federal licenciada Carla Zambelli (PL-SP) anunciar que deixaria o Brasil e viajaria à Itália, alegando que não poderia ser extraditada por também possuir cidadania italiana. Zambelli foi condenada pelo Supremo Tribunal Federal a dez anos de prisão, acusada de auxiliar um hacker na invasão do sistema de mandados do Conselho Nacional de Justiça. Ela nega as acusações e se diz vítima de perseguição política.

A Itália, no entanto, já extraditou cidadãos, como no caso do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, condenado no escândalo do mensalão. Inicialmente, ele teve a extradição negada, mas após o governo brasileiro apresentar presídios compatíveis com os padrões italianos, a decisão foi revertida e Pizzolato extraditado em 2015. Posteriormente, ele obteve liberdade condicional e, em 2020, teve sua pena extinta com base em indulto presidencial.

A controvérsia sobre as extradições envolvendo o Brasil expõe a fragilidade estrutural de seu sistema carcerário e seus efeitos no cenário internacional. Enquanto isso, criminosos condenados continuam encontrando brechas legais para escapar da Justiça brasileira sob o argumento das condições desumanas de encarceramento no país.