A Volkswagen do Brasil está sendo processada na Justiça do Trabalho por supostas práticas de trabalho análogo à escravidão ocorridas entre 1974 e 1986 na Fazenda Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia, no Pará. A ação foi movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), que acusa a montadora de submeter trabalhadores a condições degradantes, jornada exaustiva, servidão por dívida e trabalho forçado — todos os elementos que caracterizam o crime de trabalho escravo contemporâneo.
A propriedade, com 139 mil hectares, quase do tamanho da cidade de São Paulo, era voltada à criação de gado e extração de madeira e recebeu amplo apoio da ditadura militar, inclusive com incentivos milionários. Segundo o MPT, centenas de lavradores, principalmente oriundos de Goiás, Mato Grosso e do atual Tocantins, eram aliciados por intermediários conhecidos como "gatos", que os levavam à fazenda com falsas promessas de emprego. Ao chegar, os trabalhadores eram forçados a comprar utensílios e alimentos em uma cantina, contraindo dívidas que nunca conseguiam saldar. Vigiados por homens armados, eram impedidos de deixar o local.
Durante audiência realizada na sexta-feira (30), em Redenção (PA), testemunhas relataram as condições de trabalho e a dinâmica de exploração. Pedro Valdo Pereira Vasconcelos, ex-trabalhador da fazenda, afirmou que a jornada começava às 4h da manhã e seguia até o anoitecer, sob vigilância. Ao tentar deixar o local, era informado de que “não havia saldo” a receber, pois a dívida com a cantina superava qualquer remuneração devida.
O procurador Rafael Garcia Rodrigues, que coordenou as investigações, explicou que os trabalhadores viviam sob forte controle e intimidação, e que a servidão por dívida já é reconhecida como forma de escravidão pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) desde o início do século 20. Segundo ele, a responsabilidade da Volkswagen se estende por não ter impedido tais violações mesmo sendo a operadora da fazenda, cuja infraestrutura incluía até postos de saúde e áreas de lazer para funcionários administrativos.
O MPT cobra da empresa R$ 165 milhões por danos morais coletivos. Em nota enviada à imprensa, a Volkswagen do Brasil negou as acusações, alegando que conduziu investigações internas na época e não identificou irregularidades. A montadora declarou confiar na Justiça e repudiou as alegações feitas na ação movida pelo MPT.
A denúncia ganhou força com o apoio de integrantes da sociedade civil, como sindicatos, ativistas e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O padre Ricardo Rezende Figueira, à época coordenador da CPT na região, teve papel central na articulação das denúncias. Em 1983, após ser informado de que trabalhadores haviam fugido da fazenda a pé, ele passou a reunir provas e relatos, ajudando a dar visibilidade às violações.
Apesar do histórico, o caso só agora chega à Justiça com possibilidade de responsabilização. Segundo o procurador Luciano Aragão Santos, coordenador nacional de Combate ao Trabalho Escravo do MPT, trata-se de um episódio emblemático, que resgata uma realidade comprovada, mas ignorada por décadas pelo Estado brasileiro.