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Especial
30/05/2025 20:00:00

Folha de coca: tradição milenar e conflito moderno na Bolívia

Folha de coca: tradição milenar e conflito moderno na Bolívia

“No Panamá, Cristóvão Colombo relatou ter visto membros de tribos mascando folhas.” A observação feita pela socióloga Sdenka Silva, fundadora do Museu da Coca em La Paz, remete à longa história da folha de coca na América do Sul, incluindo o território brasileiro. Usada há séculos por povos indígenas, a planta é reconhecida por seus efeitos medicinais: combate o cansaço, alivia os efeitos da altitude e ajuda a controlar a fome. Ao mesmo tempo, é também a base da cocaína, o que desencadeou um dos maiores conflitos contemporâneos do continente.

A disputa entre o uso tradicional da coca e sua exploração ilícita já dura mais de cinquenta anos. Na última década, o crescimento das áreas de cultivo agravou ainda mais os confrontos, especialmente entre produtores dos departamentos bolivianos de La Paz e Cochabamba. A reportagem viajou até a Bolívia para investigar os desdobramentos desse impasse e suas consequências sociais e políticas.

Convenção de 1961 e a criminalização internacional

Apesar de seus reconhecidos benefícios, o cultivo e a comercialização da folha de coca são proibidos na maior parte do mundo desde a assinatura da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 pela ONU. Apenas Bolívia, Peru e Colômbia mantêm exceções legais.

A especialista Pien Metaal explica que, ao aderirem ao tratado, países como o Brasil comprometeram-se a restringir o acesso a substâncias consideradas ilícitas, como o ópio, a maconha e a coca. “O cultivo é permitido apenas nesses três países e sob condições específicas”, ressalta. Na Colômbia, o uso é restrito a territórios indígenas; no Peru, o Estado adquire a produção destinada a fins medicinais e tradicionais; e a Bolívia reconhece legalmente áreas limitadas para suprir demandas culturais e históricas.

Além do cultivo, a convenção também proíbe o transporte da folha entre fronteiras — inclusive entre os países com permissão de plantio.

O plano inicial era eliminar os cultivos de coca em 25 anos e os de maconha em 15. Para estudiosos, a tentativa de suprimir práticas ancestrais foi o ponto de partida para um conflito que continua em aberto.

Yungas e Chapare: dois polos, duas visões

A Bolívia é um dos três maiores produtores mundiais de folha de coca, ao lado de Colômbia e Peru. Em território boliviano, a produção está concentrada em duas regiões distintas: os Yungas, no departamento de La Paz, e o Trópico do Chapare, em Cochabamba.

Nos Yungas, os produtores se consideram guardiões da “coca ancestral”, cultivando uma folha mais suave, valorizada para o acullico — prática tradicional de mastigar a folha. Já no Chapare, a planta é mais amarga, espessa e rica em alcaloides, o que a torna preferida para a produção de cocaína.

Enquanto nos Yungas a folha é símbolo de identidade e cultura, no Chapare ela representa um mercado atravessado por interesses ilegais e disputas políticas.

Ampliação do cultivo e críticas ao governo Morales

Até 2017, o cultivo legal de coca na Bolívia era limitado a 12 mil hectares, com foco nos Yungas. Mas um decreto do então presidente Evo Morales ampliou esse número para 22 mil hectares, beneficiando sobretudo o Chapare, seu reduto político. Segundo a UNODC, a mudança representou um crescimento de 17% nas plantações.

A medida causou indignação entre produtores dos Yungas, que receberam apenas 200 hectares adicionais. Lideranças locais acusaram Morales de promover a “cocalização” da Bolívia e favorecer indiretamente o narcotráfico.

Escalada de conflitos e repressão

René Llojlla, liderança da ADEPCOCA, critica a ambiguidade do governo, que afirma combater o tráfico ao mesmo tempo em que amplia áreas de cultivo sem regulamentação. A tensão gerou confrontos, prisões e feridos. Um dos principais líderes presos foi César Apaza, figura de resistência dos Yungas, detido por mais de um ano após protestos contra o novo mercado do Chapare.

Doente e debilitado após um AVC sofrido na prisão, Apaza denunciou perseguição política e afirmou que a lei aprovada durante o governo de Morales impôs condições desfavoráveis aos produtores tradicionais, enquanto encobria a atuação do narcotráfico no Trópico de Cochabamba.

ADEPCOCA e o comércio legal da coca

A Associação Departamental de Produtores de Coca dos Yungas (ADEPCOCA), fundada em 1983 em Coripata, reúne mais de 43 mil agricultores e gerencia um mercado legal, com venda fiscalizada para uso medicinal e ritualístico. Estudos apontam que 95% da produção local passa por esse sistema, com pouca margem para desvios.

Mercado clandestino em Cochabamba

Em Cochabamba, o único mercado autorizado fica em Sacaba, mas sua movimentação é pequena diante da grande produção regional. Boa parte das folhas cultivadas no Chapare não chega ao mercado legal. Há, atualmente, pelo menos 33 centros clandestinos de armazenamento e venda de coca, com atividade aberta e ausência de fiscalização.

Autoridades reconhecem a existência desses centros paralelos, mas até hoje nenhum produtor foi responsabilizado. A situação demonstra a fragilidade do controle sobre o escoamento da folha.

Rotas do tráfico e insumos ilegais

Durante a viagem pela estrada entre Cochabamba e Santa Cruz, a equipe observou postos de gasolina com longas filas. Segundo moradores locais, traficantes contratam civis para comprar combustível usado na produção de cocaína. Também são comuns os chamados “centros de acopio”, que deveriam apenas concentrar a produção antes do envio ao mercado oficial, mas funcionam como pontos de venda ao narcotráfico.

Fiscalização desigual e silêncio no Chapare

Nos povoados tradicionais de La Paz, como Coroico, Arapata e Nogalani, o controle da venda começa nas comunidades, que emitem notas fiscais apresentadas em postos militares de verificação. Já nas áreas remotas do Chapare, onde se concentram as denúncias de produção ilegal, produtores evitam comentar a atividade. A UNODC estima que 95% das folhas da região sejam destinadas ao narcotráfico.

Coca legal e derivados tradicionais

Na conhecida “Calle de las Brujas”, em La Paz, há produtos legais derivados da coca: pomadas, chás, farinhas, doces, balas e bebidas. Esses itens são usados no tratamento de doenças como artrite, reumatismo, asma e problemas renais, reforçando o papel cultural e medicinal da planta.

Prisões no Brasil por posse de coca

Como signatário da Convenção de 1961, o Brasil proíbe o porte, transporte, comercialização e uso da folha de coca. Muitos bolivianos, sem saber da proibição, acabam presos ao entrar no país com folhas destinadas ao consumo próprio.

Foi o caso de Ruben Chambilla, costureiro detido em maio de 2023 com 70 kg da planta. Ele pretendia usar parte e revender outra a conterrâneos no centro de São Paulo, onde vive a maior comunidade boliviana do país. Ruben foi libertado meses depois por decisão judicial.

Toda a investigação — incluindo as visitas aos principais polos de cultivo — resultou em um documentário inédito que estreia neste sábado (31), com exclusividade na plataforma PlayPlus.

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