Uma operação conduzida de forma discreta pela Polícia Federal revelou que a presença da inteligência russa em solo brasileiro era mais ampla do que se imaginava. Segundo o The New York Times, a investigação brasileira, ainda em curso, identificou diversos agentes russos que atuaram sob identidades forjadas, utilizando documentos autênticos obtidos no Brasil. Até então fora do radar, esses nomes se somam a outros casos já conhecidos e evidenciam o uso do país como base estratégica para infiltrações internacionais.
Essas descobertas fazem parte da chamada Operação Leste, uma ação de contrainteligência que começou há três anos com apoio de agências como a CIA (dos EUA), os serviços secretos de Israel e da Europa. O objetivo da rede russa não era espionar o Brasil diretamente, mas sim usar o território nacional para construir coberturas de longa duração, obter passaportes legais e, a partir daí, deslocar-se para outros países com identidades aparentemente legítimas.
Entre os nomes agora revelados está o de Eric Lopes, apresentado como joalheiro com lojas em Brasília e São Paulo. Tratava-se, na verdade, de Aleksandr Utekhin, um agente infiltrado que chegou a aparecer em um programa de TV brasileira voltado a pequenos empreendedores — espaço publicitário comprado por ele próprio. Com o avanço das investigações, Utekhin desapareceu, deixando para trás imóveis vazios e sem rastro das joias exibidas nas redes sociais.
Outro caso envolve Vladimir Aleksandrovich Danilov e Yekaterina Leonidovna Danilova, que viviam sob os nomes brasileiros de Manuel Francisco Steinbruck Pereira e Adriana Carolina Costa Silva Pereira. O casal deixou o Brasil em 2018 e só foi identificado posteriormente, já vivendo em Portugal.
Roman Olegovich Koval e Irina Alekseyevna Antonova também foram identificados. Eles utilizaram documentos brasileiros antes de se mudarem para o Uruguai, em 2023. Já a agente Olga Igorevna Tyutereva estaria atualmente na Namíbia. Todos os espiões obtiveram certidões de nascimento autênticas, mas baseadas em declarações falsas, sem qualquer histórico de vida real no Brasil.
Segundo os investigadores, o padrão era recorrente: os nomes surgiam no sistema como adultos que jamais haviam estudado, se vacinado ou aberto conta bancária antes de solicitarem uma avalanche de documentos. A fragilidade do sistema nacional, descentralizado e suscetível à corrupção local, permitia a emissão de certidões com base apenas no depoimento de testemunhas.
Diante do avanço da investigação, o governo brasileiro acionou a Interpol com alertas internacionais que incluem fotos, impressões digitais e dados das identidades falsas, com alcance em 196 países. As acusações foram enquadradas como uso de documentos fraudulentos, o que contorna a restrição da Interpol quanto à atuação em casos puramente políticos, como espionagem.
Um agente brasileiro ouvido pelo NYT destacou que a exposição pública dos nomes visa tornar os espiões inoperantes. “Pensamos: o que é pior do que ser preso como espião? É ser exposto como espião”, declarou.
Como os espiões russos burlaram o sistema brasileiro?
Reportagem do site A Referência, publicada em 2023, já alertava que o Brasil apresentava vulnerabilidades que permitiam a criação de identidades falsas com documentos autênticos. Cartorários ouvidos sob anonimato confirmaram que, mesmo após a adoção da Declaração de Nascido Vivo, ainda existem brechas, sobretudo para registros de nascimentos antigos ou em áreas rurais, onde testemunhas podem fornecer declarações que originam certidões.
Embora o sistema tenha se tornado digital, o que dificulta a fraude sem conluio interno, nos períodos anteriores à digitalização era possível obter documentos com informações falsas sem levantar suspeitas. Foi o que aconteceu no caso do espião russo Sergey Cherkasov, que alegava ter nascido em 1989, antes da implementação de controles modernos.
Um delegado da Polícia Civil de São Paulo explicou que o método mais comum envolve o uso de dados de crianças falecidas cujas mortes não foram registradas oficialmente. A partir dessas informações, documentos poderiam ser emitidos e identidades assumidas legalmente. Ele também mencionou a facilidade de obtenção de CNHs falsas, geralmente com envolvimento de corrupção em departamentos de trânsito, além da falsificação de passaportes — frequentemente alvo de tentativas de fraude.
Dados da Serasa Experian corroboram o cenário: só em novembro de 2022, foram registradas mais de 283 mil tentativas de fraude de identidade no Brasil, com São Paulo liderando em números absolutos. Esse ambiente, como demonstra a Operação Leste, tornou o país um terreno fértil não apenas para criminosos, mas também para agentes de potências estrangeiras.