Apesar de sua aparência pouco atraente, a cera do ouvido — ou cerúmen — tem despertado o interesse crescente da ciência por sua capacidade de revelar informações sobre o funcionamento do corpo humano e possíveis doenças. Formada por secreções de glândulas ceruminosas e sebáceas misturadas a pelos, células mortas e outros detritos, essa substância grudenta age como uma defesa natural, impedindo a entrada de fungos, bactérias e até insetos no canal auditivo.
A composição química da cera pode refletir processos metabólicos internos, tornando-se um possível instrumento para diagnóstico de diversas doenças. Ela é formada lentamente, movendo-se do interior para a parte externa do ouvido a uma taxa de um vigésimo de milímetro por dia — e, nesse trajeto, acumula compostos que revelam pistas sobre a saúde do indivíduo.
Estudos mostram que a genética influencia a aparência da cera: pessoas de ascendência europeia ou africana geralmente têm cera úmida e pegajosa, enquanto 95% dos asiáticos têm cera seca e cinzenta. O gene ABCC11, ligado a essa diferença, também está relacionado ao odor das axilas.
Mas além dessas curiosidades, a cera pode sinalizar doenças graves. Pesquisas já associaram o tipo de cera a maior ou menor incidência de câncer de mama. Um estudo de 2010 no Japão revelou que mulheres com cera úmida tinham até 77% mais chances de desenvolver a doença, embora estudos em outros países não tenham encontrado o mesmo padrão.
Além disso, a cera pode ajudar no diagnóstico de doenças metabólicas, como a leucinose (doença da urina de xarope de bordo), onde o composto sotolon pode ser detectado na secreção. Ela também pode conter biomarcadores de doenças como diabetes, Covid-19, e distúrbios cardíacos e neurológicos, como a doença de Ménière — cuja identificação, até recentemente, dependia de um processo de exclusão demorado.
Pesquisadores brasileiros e internacionais têm desenvolvido métodos de análise da cera do ouvido para diagnosticar essas condições de forma menos invasiva. Um exemplo é o cerumenograma, criado pelo laboratório do professor Nelson Roberto Antoniosi Filho, da Universidade Federal de Goiás, que conseguiu identificar com 100% de precisão a presença de câncer (linfoma, carcinoma ou leucemia) com base em 27 compostos orgânicos voláteis encontrados na cera.
Por ser rica em lipídios e com baixa renovação, a cera do ouvido acumula sinais de alterações metabólicas ao longo do tempo, o que a torna ideal para detectar doenças em estágios iniciais. O grupo de Antoniosi também pesquisa seu uso para identificar alterações pré-cancerígenas, com potencial para aumentar as chances de cura.
Instituições como o hospital Amaral Carvalho, em São Paulo, já utilizam o cerumenograma para monitorar pacientes com câncer. Nos Estados Unidos, a cientista Rabi Ann Musah lidera pesquisas para desenvolver kits de diagnóstico baseados na análise da cera, inclusive para uso doméstico, inspirados nos testes rápidos da Covid-19.
A expectativa dos pesquisadores é de que, em breve, a cera do ouvido se torne uma ferramenta comum em exames clínicos, capaz de detectar doenças como diabetes, câncer, Parkinson e Alzheimer, tornando os diagnósticos mais rápidos, baratos e menos invasivos.