Uma das consequências mais cruéis do câncer em estágio avançado é a apatia profunda que acomete muitos pacientes, levando à perda de interesse por atividades anteriormente prazerosas. Esse quadro faz parte da caquexia, uma síndrome que atinge cerca de 80% dos doentes terminais e causa redução drástica de peso e massa muscular, mesmo com alimentação adequada. Além de aumentar o sofrimento, essa falta de motivação afasta os pacientes do convívio familiar e social, dificulta a adesão a tratamentos exigentes e recai como um fardo emocional sobre os cuidadores.
Tradicionalmente, os médicos interpretam essa apatia como uma resposta psicológica natural ao enfraquecimento físico. No entanto, uma nova pesquisa publicada na revista Science aponta uma direção diferente: a apatia pode ser causada diretamente pelo próprio câncer, que altera a química cerebral e interfere nos circuitos de motivação.
Estudos conduzidos em camundongos mostraram que a doença libera citocinas inflamatórias que ativam a área postrema — uma pequena região do cérebro sem barreira hematoencefálica, que detecta essas moléculas diretamente do sangue. Ao ser ativada, essa área inicia uma cadeia de reações que culmina na redução da liberação de dopamina no núcleo accumbens, área relacionada à motivação. Embora a dopamina seja frequentemente associada ao prazer, sua principal função é impulsionar o esforço para alcançar recompensas, tornando-se essencial para a disposição de agir.
Nos experimentos, camundongos com câncer continuavam buscando recompensas fáceis, mas evitavam tarefas que exigiam maior esforço. Essa perda de motivação acompanhava, em tempo real, a queda dos níveis de dopamina, sugerindo que o cérebro não está apenas sendo desgastado, mas sim reagindo ativamente a sinais específicos enviados pelo câncer.
A boa notícia é que os pesquisadores conseguiram reverter esse quadro nos animais. Ao desativar neurônios sensíveis à inflamação ou estimular diretamente a liberação de dopamina, foi possível restaurar a motivação, mesmo com os tumores ainda presentes. Além disso, o uso de medicamentos que bloqueiam uma citocina específica — similares aos usados no tratamento de artrite — também demonstrou eficácia. Embora o estado físico dos camundongos não tenha melhorado, a disposição deles para buscar recompensas foi restabelecida.
Essas descobertas sugerem que, ao focar nesse circuito entre inflamação e dopamina, pode ser viável melhorar significativamente a qualidade de vida de pacientes com câncer avançado, ainda que a cura não esteja ao alcance. Essa abordagem derruba a tradicional separação entre sintomas físicos e psicológicos, mostrando que a doença manipula diretamente os mecanismos cerebrais ligados à vontade de agir — e que essa manipulação pode ser combatida.
A pesquisa ainda vai além do câncer. A mesma molécula inflamatória associada à apatia está presente em condições como depressão, infecções crônicas e doenças autoimunes. Historicamente, a apatia pode ter sido uma vantagem evolutiva em casos de infecções temporárias, ao preservar energia. No entanto, em doenças persistentes, esse mecanismo se torna um obstáculo, aumentando o sofrimento e dificultando a recuperação.
Apesar de ainda ser necessário aprofundar os estudos para aplicar esses achados em humanos, os resultados já indicam um caminho promissor. Com novas terapias, talvez seja possível resgatar, mesmo diante do avanço de enfermidades graves, a essência e a motivação dos pacientes — trazendo alento tanto a eles quanto às famílias que testemunham essa perda silenciosa.