Nos últimos anos, o ensino de medicina no Brasil passou por uma expansão acelerada, especialmente no setor privado, transformando-se em um mercado bilionário que levanta dúvidas sobre a qualidade da formação oferecida. Hoje, com 390 faculdades em atividade, sendo mais de 80% delas privadas, a área movimenta cerca de R$ 26,4 bilhões por ano e atrai grandes grupos educacionais e investidores.
Desde 1990, o número de cursos quintuplicou. Parte desse crescimento foi impulsionada pelo programa Mais Médicos, lançado em 2013, que incentivou a criação de novas vagas com o objetivo de ampliar o acesso a profissionais de saúde. Embora a iniciativa tenha buscado atender a uma demanda social, acabou fortalecendo a abertura de cursos por instituições particulares com mensalidades que chegam a R$ 10 mil, e vagas avaliadas entre R$ 2 e 3 milhões cada.
Gigantes e lucros bilionários
Esse cenário favoreceu o surgimento de grandes grupos empresariais como Ânima, YDUQS e Afya, esta última controlada pelo grupo alemão Bertelsmann. Desde que abriu capital na bolsa Nasdaq, em 2019, a Afya investiu mais de R$ 3 bilhões na compra de faculdades de medicina, consolidando-se como a maior do país no segmento.
Mesmo com a queda de interesse em outras graduações, medicina mantém alta procura, o que especialistas atribuem ao prestígio da profissão, à estabilidade de mercado e à possibilidade de altos rendimentos após a formação. Entretanto, isso tem gerado preocupação com o risco de saturação do mercado e queda no retorno financeiro, levando muitos futuros alunos a questionarem se ainda vale a pena investir na área.
Judicialização e falta de critérios claros
Diante do avanço desenfreado, o Ministério da Educação suspendeu em 2018 a abertura de novos cursos e o aumento de vagas, alegando que as metas de expansão foram atingidas e que era necessário preservar a qualidade do ensino. Ainda assim, faculdades recorreram à Justiça para garantir a continuidade de vestibulares e matrículas com base em decisões liminares. Só em 2023, 6,3 mil novas vagas foram criadas, sendo 3,5 mil por meios judiciais.
Especialistas alertam para a fragilidade do controle sobre a abertura de cursos. Mario Roberto Dal Poz, da UERJ, critica o uso da via judicial como forma de burlar critérios técnicos. Ele e outros acadêmicos defendem maior rigor na autorização de faculdades e mais transparência nos processos de avaliação. O Inep, por sua vez, anunciou mudanças nas formas de fiscalização, com visitas presenciais às instituições para verificar a qualidade da formação.
Formação em debate: exame de ordem para médicos?
Atualmente, a avaliação dos cursos é feita em grande parte com base no Enade, aplicado ao fim da graduação. Muitos especialistas defendem um acompanhamento mais contínuo, com avaliações por etapas. Uma proposta frequente é a criação de um exame obrigatório para que os formados possam exercer a medicina, semelhante à prova da OAB para advogados. Dal Poz, no entanto, considera a ideia excessivamente restritiva para quem não conseguir aprovação.
Expansão pode afetar o mercado
A crescente oferta de cursos e profissionais levanta dúvidas sobre os impactos no mercado de trabalho. O alto investimento exigido — que pode ultrapassar R$ 500 mil por aluno ao final da graduação — aliado ao risco de saturação, acende o alerta entre estudantes e investidores. Já há sinais de retração: mensalidades que antes ultrapassavam os R$ 10 mil agora giram em torno de R$ 7 mil em algumas instituições, e analistas do mercado financeiro, como os do BTG Pactual, indicam queda na valorização das vagas e desconfiança em relação à continuidade da expansão do setor.
Negócio lucrativo, mas em xeque
A medicina tornou-se um negócio de alto retorno para grupos privados, mas também uma área cercada de questionamentos. A busca por lucro, aliada à abertura desenfreada de cursos, pode colocar em risco a qualidade do ensino e a própria credibilidade da profissão. Sem regulação eficiente, critérios claros e avaliação rigorosa, o país corre o risco de transformar uma das áreas mais sensíveis da sociedade em um negócio de alto custo e retorno incerto.