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Especial
04/04/2025 18:00:00

Quem entrega comida, passa fome: o paradoxo do prato vazio

Quem entrega comida, passa fome: o paradoxo do prato vazio

Em um tempo onde a rapidez e a praticidade definem o cotidiano, bastam dois toques na tela do celular para que uma refeição chegue à porta de casa. No entanto, pouco se vê – ou se quer ver – do outro lado desse processo: o entregador. A pesquisa Entregas da Fome, realizada pela Ação da Cidadania em parceria com o Instituto Djanira, escancara uma realidade cruel. Os trabalhadores que movimentam o sistema de entrega de alimentos por aplicativo convivem com a fome enquanto distribuem refeições.

Segundo o levantamento, 13,5% dos entregadores entrevistados em São Paulo e no Rio de Janeiro vivem em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, ou seja, enfrentam uma redução severa na alimentação ou passam fome de fato. Mais da metade sofre algum nível de insegurança alimentar. Muitos têm filhos pequenos em casa. São majoritariamente jovens negros, moradores de periferias, que arriscam suas vidas diariamente nas ruas das maiores cidades brasileiras para, ironicamente, não conseguirem nem o mínimo para comer.

Sem proteção e sem escolha

A dura contradição é explícita: quem entrega comida, muitas vezes, sente fome. E não é apenas uma metáfora. São pessoas que trabalham até 10 horas por dia, todos os dias da semana, sem direito a férias, assistência médica ou qualquer garantia trabalhista. Cerca de 41% já sofreram acidentes em serviço. A maioria arca com todos os custos do ofício — desde o celular e o transporte até seguros, quando conseguem pagar. Apenas 27% contribuem com a Previdência Social, geralmente com recursos próprios.

O modelo de trabalho que, no passado, era exceção, hoje se tornou regra com a chamada “plataformização”. As empresas, embora se autodenominem apenas intermediárias, controlam algoritmos, definem rendimentos, impõem metas e punições. Quando é lucrativo, se posicionam como agentes de inovação. Quando se cobra responsabilidade, assumem o papel neutro de "tecnologia". E tudo isso se esconde sob o rótulo da "autonomia", como se a escolha de ser entregador fosse uma opção livre, e não uma ausência de alternativas. É a retórica neoliberal que transforma a falta de direitos em liberdade ilusória.

A precarização que se intensifica

Os entregadores que usam bicicleta, principalmente os que atuam no Rio de Janeiro, enfrentam ainda mais dificuldades. Entre aqueles que vivem com até meio salário mínimo por pessoa na família, mais de 40% estão em situação de insegurança alimentar grave. São jovens que passaram pela pandemia sem qualquer tipo de proteção, enfrentando o vírus, o desemprego e a informalidade. Muitos deixaram os estudos ou sequer chegaram a ter uma chance real de começar.

A ideia do “bico” e da “flexibilidade” apenas disfarça uma desigualdade estrutural que condena milhares à miséria. É necessário afirmar com clareza: a fome enfrentada por esses trabalhadores é uma violação de direitos humanos. Não é fruto de desorganização, preguiça ou falta de empenho. É consequência direta de um sistema econômico que transforma direitos em privilégios ocasionais.

A urgência de um novo caminho

A fome de quem entrega comida representa uma crise ética e social. Sem regulamentação efetiva, proteção trabalhista de verdade e políticas públicas que assegurem o direito básico à alimentação, o cenário tende a se agravar. A chamada economia de aplicativos não pode continuar sendo uma zona livre de responsabilidades. O lucro não pode continuar sendo construído sobre corpos cansados, machucados — e famintos.

Quem leva comida aos outros não pode voltar pra casa com o estômago vazio. Esse é o paradoxo do prato vazio que não pode mais ser ignorado.



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