Silvana Santos ainda lembra exatamente a casa e o nome de cada morador de Serrinha dos Pintos que, na infância, perdeu a capacidade de andar.
As filhas de dona Loló na entrada da cidade, Rejane perto da estrada, Marquinhos logo depois do posto de gasolina, Paulinha em frente à escola...
Foi nesta pequena cidade do sertão potiguar, com menos de 5 mil habitantes, que a bióloga e doutora em genética descobriu, estudou e nomeou uma doença genética rara e até então desconhecida no mundo: a síndrome Spoan.
Essa condição é causada por uma mutação genética que pode ser rastreada até os primeiros colonizadores do sertão brasileiro. Afetando o sistema nervoso, a doença leva ao progressivo enrijecimento e enfraquecimento dos membros. Além disso, os olhos dos afetados apresentam movimentos rápidos e involuntários.
Para que a síndrome se manifeste, é necessário que a pessoa herde um gene mutado tanto da mãe quanto do pai. Isso significa que, em comunidades onde há alta taxa de casamentos entre parentes, o risco de transmissão da doença aumenta consideravelmente.
Serrinha dos Pintos, isolada geograficamente e com pouca chegada de novos moradores, tem uma população onde muitos compartilham graus de parentesco, tornando mais comuns as uniões consanguíneas. O fenômeno chamou a atenção de Silvana, que se mudou para a região e se dedicou à pesquisa da doença.
O primeiro contato de Silvana com a síndrome foi em São Paulo, ao ouvir relatos de vizinhos originários de Serrinha dos Pintos sobre pessoas na cidade que, desde cedo, perdiam a capacidade de andar. Entre os casos estava o de Zirlândia, que, ainda criança, começou a apresentar movimentos involuntários nos olhos e, com o tempo, perdeu os movimentos das pernas e braços.
Intrigada, Silvana decidiu visitar a cidade e investigar os casos. O que começou como um estudo para entender casamentos entre primos se transformou na descoberta de uma nova síndrome. Durante anos de pesquisa, identificou 82 casos de Spoan no mundo, sendo 70 no Alto Oeste Potiguar e 18 em Serrinha dos Pintos.
A prevalência da doença na cidade se deve ao alto índice de casamentos entre parentes. Estudos mostraram que mais de 30% dos casais da cidade são consanguíneos, e um terço deles tem pelo menos um filho com deficiência. Essa taxa faz de Serrinha uma das cidades brasileiras com maior incidência de casamentos entre familiares.
No entanto, esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. Em algumas regiões do Oriente Médio, as taxas são ainda mais elevadas devido a fatores culturais.
Silvana percorreu milhares de quilômetros entre São Paulo e Serrinha dos Pintos, colhendo amostras de DNA e ouvindo histórias da comunidade. A pesquisa revelou que a mutação genética que causa a Spoan está no cromossomo 11 e afeta a produção de uma proteína essencial para os neurônios.
Curiosamente, os moradores costumavam atribuir a condição a um ancestral chamado "Velho Maximiano", acreditando que a doença teria origem em uma sífilis hereditária. Embora a sífilis não tenha qualquer relação com a Spoan, a explicação popular remete ao fato de que, no passado, essa infecção poderia causar sintomas semelhantes.
A pesquisa revelou que a mutação genética tem mais de 500 anos e veio com os colonizadores europeus, possivelmente portugueses e judeus sefarditas que migraram para o sertão nordestino. A descoberta de casos da síndrome no Egito reforçou essa hipótese.
Embora ainda não haja cura para a Spoan, a identificação da doença trouxe avanços importantes para os moradores da região. Antes, os pacientes eram chamados de "aleijados", termo que foi substituído pela compreensão da condição genética.
Além disso, cadeiras de rodas personalizadas passaram a ser distribuídas para os afetados, melhorando sua qualidade de vida. A pesquisadora Claudia Galvão, especialista em terapia ocupacional, tem trabalhado para adaptar equipamentos às necessidades dos pacientes.
Hoje, a conscientização sobre genética está mais presente na cidade, e alguns casais buscam orientação antes de formar uma família. Um novo projeto, liderado por Silvana e pesquisadores da USP, busca oferecer testes genéticos para casais em idade reprodutiva, ajudando-os a compreender os riscos de transmitir doenças hereditárias.
Embora Silvana não resida mais em Serrinha dos Pintos, seu trabalho deixou um legado. Para os moradores, ela se tornou parte da família — mesmo que não pelo sangue, certamente pelo vínculo criado com a comunidade.