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18/09/2024 06:00:00

Farmacêutica de opioides repete no Brasil tática que matou milhares nos EUA

Empresa da crise de opioides contrata médicos para ensinar prescrição no Brasil; um deles fez projeto de lei que difunde uso das substâncias


Farmacêutica de opioides repete no Brasil tática que matou milhares nos EUA

Metrópoles

Em fevereiro de 2023, numa sala de convenções do resort de luxo Villa Rossa, funcionários da gigante farmacêutica Mundipharma ergueram suas taças de espumante e brindaram aos bons resultados de vendas no ano anterior e aos 10 anos de atividade do laboratório no Brasil. A celebração, que atravessou quatro dias no resort a 76 quilômetros de São Paulo, teve como ponto alto uma festa de carnaval com todos de abadá, e entrega de medalhas pelo empenho nas vendas de medicamentos à base de opioides, substâncias que, bem longe dali, foram protagonistas na morte de mais de meio milhão de americanos. Uma pista do passado da empresa estava nas paredes do salão, decoradas com cartazes da Mundipharma exibindo o slogan “Construindo um futuro com precisão” — uma referência à autocrítica que a empresa fez, de não terem sido precisos ao explicitar os riscos do uso da oxicodona, princípio ativo de seu principal produto, e assim terem levado a uma das mais mortais crises de saúde pública dos Estados Unidos.

A investigação jornalística Mundo da Dor, uma colaboração do Metrópoles e mais 10 veículos, entre eles o site americano The Examination e a revista alemã Der Spiegel, revela, porém, que a expiação do slogan talvez esteja mais para uma peça de marketing do que para uma mudança real de conduta da empresa.

Após cinco meses de apuração, a investigação mostrou que, tal qual nos Estados Unidos, a Mundipharma no Brasil repete táticas de venda usadas por lá na década de 1990 e no início dos anos 2000. O laboratório segue afirmando que a oxicodona de liberação prolongada não causa dependência, embora a ciência diga o contrário. A empresa também minimiza o eventual risco de uma crise semelhante à americana acontecer no Brasil, o que é contestado por especialistas. A Mundipharma financia, assim como fez nos Estados Unidos, eventos sobre o uso de opioides — em que médicos promovem essas substâncias a outros médicos —, sob a justificativa de que visam à formação e educação para o uso dos medicamentos. Nessas aulas, a farmacêutica detém o controle absoluto sobre o que os médicos falam das substâncias e paga todas as despesas dos profissionais convidados para participar dos eventos.

A Mundipharma é conhecida mundialmente por distribuir os remédios da Purdue Pharma, empresa americana que assumiu a culpa pela morte de mais de 500 mil pessoas nos Estados Unidos por overdose causada por opioides. Fundada pelos irmãos e médicos Arthur, Mortimer e Raymond Sackler, a Purdue Pharma é responsável por desenvolver o OxyContin, remédio composto pela substância oxicodona, que tem um efeito 150% maior que a morfina e possui alto risco de dependência. O marketing e a propagação do OxyContin para o tratamento de dor no fim da década de 1990 e início dos anos 2000 levaram aproximadamente 90 mil pessoas à morte só naqueles 10 anos, por overdose de opioides, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano.

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A Mundipharma desembarcou no Brasil em 2013, um ano antes de a Purdue começar a ser alvo de processos judiciais coletivos nos Estados Unidos pelas consequências do uso do OxyContin. A entrada do OxyContin no mercado de tratamento de dor no país era o principal objetivo da farmacêutica. Em março daquele ano, a empresa deu entrada no processo de regulamentação do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e só conseguiu a aprovação três anos depois, em julho de 2016.

Remédios à base de oxicodona começaram a ser comercializados no Brasil em 2001 pelo laboratório Zodiac. Entretanto, os primeiros dados que a Anvisa tem sobre a venda de oxicodona são de 2014, quando foram comercializadas 149,8 mil caixas. Em 2016, ano em que o OxyContin, da Mundipharma, entrou para o mercado brasileiro, o número saltou para 169,5 mil caixas vendidas, um aumento de 13,5%. O crescimento aconteceu até 2017. No mesmo período, a Mundipharma começou a vender outro opioide no Brasil: o Restiva, um adesivo que tem como princípio ativo a buprenorfina e é considerado, atualmente, o principal produto da farmacêutica no Brasil.

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O medicamento mais recente do laboratório a ser regulamentado pela Anvisa, em 2018, foi o Targin, que representou um retorno da empresa à promoção da oxicodona, princípio ativo em que foi pioneira. Ao contrário do OxyContin, o Targin não tem apenas a oxicodona. O remédio é associado a outra substância, a naloxona, que funciona como um antídoto para algumas reações adversas do opioide. Sua bula explica que a naloxona é usada para reduzir os efeitos colaterais, como a constipação.

Outro efeito colateral do medicamento, também citado na bula, é a dependência. Em 21 de agosto de 2024, a Mundipharma disse, em resposta a essa investigação, porém, que a associação com a naloxona torna o uso do Targin seguro. A afirmação é falsa, segundo o pesquisador sênior da FioCruz Francisco Inácio Bastos. De acordo com o médico, a associação das duas substâncias não torna o medicamento seguro contra a dependência.

Um vídeo da Mundipharma usado para o treinamento de seus funcionários, e obtido pela coluna, mostra que, em 2022, a farmacêutica tinha o objetivo de transformar o ano seguinte no “ano de Targin” no Brasil. A peça apresenta o medicamento como “equivalente ao OxyContin” e fala em construir “o futuro de Targin com precisão”, em outra referência à confessa falta de precisão ao anunciar os efeitos do remédio protagonista da crise nos Estados Unidos. Mas o vídeo é impreciso na apresentação do risco de dependência. O tema foi tratado em breves quatro segundos, num longo texto com letras pequenas, somente no início do vídeo.

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A exemplo do OxyContin, o Targin é um comprimido com liberação lenta na corrente sanguínea. O desbloqueio controlado da substância no sangue não causa um pico no sistema nervoso central, que está diretamente ligado a efeitos colaterais, como a dependência. Em entrevista à coluna, Walter Almeida, gerente de Acesso da Mundipharma, afirmou que, no Brasil, nunca chegou a ser vendido o mesmo OxyContin comercializado no início da década de 1990 nos Estados Unidos. “O Oxycontin de liberação rápida, que causou o problema nos Estados Unidos, nunca chegou ao Brasil. O que a gente trouxe para cá já era de liberação controlada”, disse Almeida.

Mas um estudo de 2003 do Departamento de Prestação de Contas do governo dos Estados Unidos (Government Accountability Office) mostra que o OxyContin de liberação controlada, aprovado em 1995, foi apontado como o causador da crise dos opioides naquele país. A informação de que a dispensação lenta no sangue mitigaria a dependência da substância também era usada pela Mundipharma na década de 1990. Nas farmácias brasileiras, desde a chegada do Targin, o OxyContin foi substituído e, há alguns anos, a Mundipharma passou a vender o medicamento apenas para uso hospitalar.

Disse o estudo do Departamento de Prestação de Contas do governo dos Estados Unidos:

“Essa característica [liberação controlada] pode ter tornado o OxyContin um alvo atraente para abuso e desvio, segundo o DEA [Departamento Antidrogas dos EUA]. Funcionários da FDA [Food and Drug Administration, agência sanitária dos EUA] pensaram que o recurso de liberação controlada tornaria a droga menos atraente para os usuários. No entanto, a FDA não percebeu que o medicamento poderia ser dissolvido em água e injetado, o que reverte as características de liberação controlada e cria uma sensação imediata de euforia, aumentando, assim, o potencial de abuso”.

Em entrevista à coluna em julho deste ano, a psiquiatra Mariana Campello, do ambulatório de dependência em opioides do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), apontou que mesmo a oxicodona de liberação controlada, como é o caso do Targin e do OxyContin, causa sintomas de abstinência no paciente. Campello afirmou que a oxicodona é a terceira substância mais presente entre os dependentes químicos do ambulatório. A primeira é a morfina, e a segunda é a fentanila. Inaugurado em janeiro de 2024, o ambulatório é o primeiro a oferecer tratamento para dependência em opioides pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

A Mundipharma disse, em 21 de julho, em resposta a questionamentos desta investigação, que os produtos da empresa “não devem desempenhar um papel importante em qualquer abuso de opioides prescritos no Brasil”. A farmacêutica alegou que o OxyContin presente no Brasil é do tipo “ADF [Abuse-Deterrent Formulations]”. Isso significa que o uso abusivo, por exemplo via inalação, é mais difícil devido a uma resina que dificulta o medicamento de ser esfarelado. O Targin, entretanto, não tem a mesma formulação e pode ser macerado.

Um ambulatório para tratar dependentes de opioides

O medicamento mais vendido pela Mundipharma no Brasil, segundo Walter Almeida, gerente de Acesso da Mundipharma, é o Restiva. O opioide, que tem como princípio ativo a buprenorfina, é vendido em forma de adesivo e deve ser aplicado no ombro, no peito ou nas costas. Almeida ressaltou que o medicamento é mais seguro contra efeitos colaterais do que o OxyContin e o Targin. O Restiva de fato é um dos medicamentos usados para tratar a dependência em opioides dos pacientes do ambulatório do Hospital das Clínicas da USP. O outro, segundo a psiquiatra Mariana Campello, é a metadona, opioide que tem uma liberação mais lenta do que a oxicodona no organismo e apresenta menos casos de abstinência e dependência.

Os três medicamentos à base de opioides para tratamento de dor comercializados pela Mundipharma no Brasil — OxyContin, Targin e Restiva — são indicados, segundo suas bulas, para tratamento de dores moderadas a intensas, que podem ser causadas por tumores de câncer, dores crônicas ou pós-operatórios, entre outros casos.

As artes nas paredes do Instituto Perdizes, onde funciona o ambulatório de opioides do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, dão boas-vindas a um corredor com seis salas, onde funciona a triagem de possíveis pacientes. Quem procura ajuda para curar a dependência em opioides passa por uma consulta que avalia o seu nível de dependência, e se é um caso de internação.

Segundo dados de julho do Hospital das Clínicas de São Paulo, dos 60 pacientes que se trataram da dependência em opioides no ambulatório desde seu lançamento, em janeiro de 2024, oito tiveram alta, 15 ficaram internados e o restante continua em acompanhamento. A maioria das pessoas, segundo Campello, desenvolveu o vício ao usar opioides para tratamento de dor crônica ou depois de uma cirurgia.

“Os pacientes dizem que é uma droga que dá um conforto mental, psíquico e físico absoluto, como se fosse um carinho, um colo, um abraço de mãe. E que isso é uma sensação tão positiva que é quase impensável conseguir parar de usar logo depois que você usa pela primeira vez”, disse a psiquiatra.

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Nas consultas do Instituto Perdizes, Campello já ouviu pacientes admitirem que injetaram ou inalaram remédios à base de oxicodona para, segundo ela, “potencializarem os efeitos” da analgesia. A psiquiatra alerta que é difícil para dependentes de substâncias prescritas se considerarem usuários de droga. Entretanto, ela pontuou: o maior despreparo está nos médicos que não reconhecem os sintomas de dependência num paciente.

Apesar de especialistas afirmarem que o Brasil está abaixo da média da prescrição desejada de opioides para a população, o consumo de substâncias opiáceas é algo que está no radar de gigantes do setor médico, como a Rede D’Or. A maior rede de hospitais privados do Brasil conta com um prontuário universal, em que são compilados dados de prescrição de opioides. Dessa maneira, pacientes que voltam frequentemente ao pronto-socorro solicitando opioides para tratar dores são direcionados para tratamento contra dependência.

Os bastidores da relação da Mundipharma com médicos 

Walter Almeida, o gerente de Acesso da Mundipharma, contou que, quando a empresa chegou ao Brasil, aulas começaram a ser ministradas para médicos aprenderem sobre o uso de opioides no tratamento de dor, prática que, segundo ele, perdura até hoje. A educação dos médicos no manuseio das substâncias e o empenho da Mundipharma para o aumento das vendas fizeram com que a prescrição de opioides aumentasse nos últimos 10 anos, segundo o executivo.

Almeida começou a trabalhar na Mundipharma em 2015 como representante comercial em Minas Gerais. A farmacêutica não havia completado um ano no Brasil e não tinha nenhuma droga aprovada na Anvisa, mas fazia eventos com médicos contratados por eles para conscientizar e educar outros profissionais da saúde sobre o uso de opioides para tratamento de dor crônica não oncológica. Segundo o funcionário da Mundipharma, ele participava, na época em que era representante comercial, de três a quatro eventos por mês para discutir dor com outros médicos.

Em 2018, a Mundipharma parou de promover opioides para médicos nos Estados Unidos no esteio do processo judicial que corre na Justiça americana. Entretanto, no Brasil, o cenário não é o mesmo. Esses “eventos” — que são, na prática, aulas oferecidas pela Mundipharma — geralmente acontecem à noite, em meio a jantares em salas reservadas de restaurantes. De acordo com o funcionário da farmacêutica, a opção por lugares fechados se deve ao compliance, porque clientes dos restaurantes não poderiam ter acesso ao que era falado sobre os medicamentos.

“Esses eventos são em locais fechados. A Mundipharma se preocupa muito em relação a esse compliance. Quando a gente for falar sobre dor, sobre drogas, tem que ser em um ambiente onde somente há profissionais, médicos, um lugar fechado onde não vai ter ruído, onde nenhuma pessoa leiga vai ter acesso, vai escutar”, afirmou.

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Almeida disse ter percebido um aumento do interesse dos médicos pelo tratamento de dor.

“Desde 2015, eu vi uma mudança drástica, mas drástica, muito drástica, no interesse de médicos por dor. Antes a gente tinha poucos especialistas [em dor], nenhum médico queria ser médico da dor. […] A gente recebia pedidos de ajuda de médicos que queriam estudar mais sobre dor. Acabou que foi um nicho também que o médico viu de mercado e oportunidade e acabou se especializando”, disse Almeida.

Pós-graduado em Dor no Instituto de Ensino Albert Einstein, Almeida foi promovido em 2020 para o cargo de gerente de Acesso da Mundipharma, área encarregada de abrir mercados para a empresa, com planos de saúde, clínicas e outros grandes clientes. Segundo ele, a farmacêutica busca médicos que são “formadores de opinião” para ministrarem as aulas para outros médicos sobre o uso de opioides.

Os profissionais contratados pela Mundipharma para darem aulas, segundo Almeida, devem compartilhar todo o material da aula com especialistas da empresa no Reino Unido, onde está a sede da farmacêutica, para avaliação do alto escalão. Caso a aula não seja aprovada, ou seja, se o médico falar algo com que a Mundipharma não concorde, o trecho pode ser retirado do material a ser usado.

Médico que deu aula paga pela Mundipharma fez projeto de lei

coluna entrevistou um dos médicos “formadores de opinião” que foi contratado para dar aula para Mundipharma. Presidente da Sociedade Brasileira de Estudo da Dor (Sbed) desde o início de 2024, e com mandato até 2025, o anestesiologista Carlos Marcelo de Barros, especialista em dor, deu uma aula para a farmacêutica em 2023 sobre casos clínicos oncológicos.

Barros afirmou ter recebido US$ 900 pela aula — cerca de R$ 4,9 mil na conversão de 16 de setembro de 2024. Segundo Barros, ele teve que mandar seu material para análise da Mundipharma, e 80% da aula apresentada foi de sua autoria e 20% foi orientação da farmacêutica. O médico também disse que não teve qualquer contrato com a farmacêutica após a “primeira e única aula” que lecionou, e alegou que já teve essa relação profissional com outras farmacêuticas de opioides.

Entre 2019 e 2023, a Sociedade Brasileira de Estudo da Dor recebeu US$ 39 mil — cerca de R$ 214,8 mil na conversão de 16 de setembro de 2024 — em investimentos da Mundipharma. O dado foi enviado pela farmacêutica a esta reportagem em 13 de setembro. A empresa disse que o “suporte” foi para atividades como simpósios educacionais, programas médicos e presenças em congressos realizados pela entidade. A Mundipharma, entretanto, ressaltou que o aporte financeiro “não foi limitado a essas atividades”.

Em seu mandato na Sociedade Brasileira de Estudo da Dor, Carlos Marcelo de Barros também teve um enfoque legislativo. No começo deste ano, Barros apresentou um projeto de lei à deputada Bia Kicis, do PL do Distrito Federal, que propõe uma série de iniciativas de tratamento de dor crônica no Brasil.

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O Projeto de Lei nº 336/2024 está parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a principal da Câmara dos Deputados, desde junho deste ano. A proposta pede a institucionalização da disciplina de dor nas faculdades; a criação do Dia Nacional de Conscientização e Enfrentamento da Dor Crônica, em 5 de julho; e o atendimento integral pelo Sistema Único de Saúde a pessoas que sofrem de dor crônica. Segundo especialistas, o projeto de lei pode ser uma janela para o aumento de prescrição e circulação de opioides no país.

À coluna a Mundipharma disse não ter havido qualquer interferência da farmacêutica na formulação da proposta. A informação foi confirmada pelo presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Dor, que negou qualquer envolvimento além da aula que ministrou em 2023 sob patrocínio do laboratório.

deputada Bia Kicis alegou à coluna que sabe dos riscos que o aumento de prescrição de opioides pode causar, mas que considera mais importante “as pessoas sofrendo”. A parlamentar afirmou também que a proposta ficará parada na CCJ para “maior discussão”. Segundo ela, haverá audiências públicas sobre o projeto de lei. Kicis afirmou também que não sabia que Barros — que lhe apresentou o projeto de lei — teve qualquer tipo de vínculo com a Mundipharma, mas considera que “não tem nada a ver” com isso e que o projeto de lei “se distancia” de qualquer interesse de grandes farmacêuticas.

À coluna o presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Dor defendeu o aumento da prescrição de opioides para pacientes com dor crônica não oncológica, mas considerou que o controle de substâncias como a oxicodona deveria ser mais rígido por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa). Barros também disse que médicos deveriam ser mais bem orientados a manipular e reconhecer o uso abusivo de opioides para evitar uma crise como a dos Estados Unidos.

Lá, a crise dos opioides ganhou contornos dramáticos. Investigações de autoridades americanas mostraram que a Purdue Pharma, produtora dos medicamentos distribuídos pela Mundipharma, sabia, desde meados da década de 1990, que o OxyContin estava transformando milhares de pacientes em dependentes químicos, principalmente nos subúrbios da classe média americana. Analgésicos opioides passaram a ser prescritos, principalmente para adolescentes, para torções, retirada de dentes e dores nas costas, por exemplo.

A oxicodona, como qualquer medicamento, faz o paciente desenvolver uma tolerância durante seu uso e, além da analgesia, causa uma sensação de euforia. Para potencializar essa sensação, pacientes passaram a usar o medicamento com mais frequência, de maneira inalada ou injetada. Estudos do Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano mostraram que, a partir de 2014, dependentes de oxicodona passaram a usar outras substâncias, como fentanila e heroína, agravando a crise.

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A situação americana aparentemente está distante no Brasil, mas o risco não pode ser ignorado, conforme explicou a psiquiatra Mariana Campello, do Hospital de Clínicas da USP:

“A gente vai minimizando, vai colocando esse problema como ‘aqui não vai chegar, não vai ser tão abrangente como dessa forma’. Mas a gente sabe que, cada vez mais, esse problema vai ser uma questão que vai crescer e precisamos começar a falar sobre isso e considerar esse problema com tal seriedade, justamente para a gente evitar os mesmos erros que foram cometidos, evitando essa grande epidemia de opioides como a dos Estados Unidos”.

Em 1926, num ensaio de cunho autobiográfico, Virginia Woolf (1882-1941) escreveu sobre a dor. Disse a escritora em “Sobre estar doente”, enquanto sofria com severas enxaquecas: “A mais simples colegial quando se apaixona tem Shakespeare ou Keats para exprimir seus pensamentos, mas peça a alguém que sofre para tentar explicar sua dor de cabeça a um médico e a linguagem imediatamente emudece”. Woolf talvez não imaginasse que, 100 anos depois, as prateleiras de respostas oferecidas pelas grandes farmacêuticas são engenhosamente sedutoras.



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