Jornal da USP
Uma triste notícia: nada menos do que 78% dos municípios brasileiros sofrem com falta de notícias locais ou com a precariedade delas. São cerca de 2.712 municípios que não têm nenhum veículo de comunicação local. Outros 1.635 municípios possuem um ou dois veículos de comunicação. Essas localidades são chamadas de desertos de notícias e os quase desertos. Os dados são do Atlas da Notícia, produzido pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), e se referem ao ano de 2023. Uma realidade que, até certo ponto, ameaça até a democracia.
Todos os estados brasileiros têm municípios nessa situação e São Paulo não é diferente. Os dados apontam 442 cidades nessas condições: são 327 desertos e 115 quase desertos, ou 5,4 milhões de paulistas, cerca de 12,16% da população total do Estado, vivendo com pouca ou nenhuma cobertura local da imprensa. Segundo o Atlas, Luiz Antônio é uma das 16 cidades da Região Metropolitana de Ribeirão Preto classificadas como desertos de notícias.
Morador da cidade, o estudante de arquitetura Adilson Rodrigues, 22, enxerga que a falta de um veículo de notícias local traz insegurança e dúvidas, especialmente em anos eleitorais. “Eu vi uma campanha na internet falando para buscarmos os planos, as oportunidades e as intenções dos nossos candidatos”, diz o estudante. Contudo, para ele, mesmo que isso seja disponibilizado em portais públicos, faltam instituições “que facilitem a distribuição dessa informação” para os cidadãos, principalmente àqueles que tenham pouca ou nenhuma afinidade com informática.
Segundo o jornalista Dubes Sônego, um dos pesquisadores do Atlas da Notícia e responsável pela região Sudeste, percepções como a de Rodrigues são resultados da ausência de profissionais que chequem e separem o que é fato e o que é especulação. A atuação do jornalismo local, segundo Sônego, permitiria que as pessoas formassem opinião política e construíssem debates, inclusive entre aqueles com opiniões contrárias, mas, em um deserto de notícias, isso fica muito difícil. “O jornalista tem um papel fiscalizador, no sentido de mostrar ou dar transparência para o que o poder público está fazendo”, complementa.
Para o sociólogo da comunicação e professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, os desertos criam uma lacuna entre os indivíduos e suas realidades mais imediatas. “Você tem acesso a notícias internacionais e nacionais, mas quando se trata do âmbito regional, essas informações já começam a diminuir. No âmbito local, a circulação de informações fica quase restrita ao boca a boca”, diz. Para ele, mesmo que a pessoa tenha acesso a notícias de lugares distantes, falta um padrão de comparação e um entendimento mais lógico e abalizado da realidade local.
“Essa situação é bastante preocupante na medida em que fragiliza o debate público, o escrutínio noticioso sobre os fatos de interesse público daquela região. O trabalho jornalístico é fundamental na fiscalização dos poderes, na promoção do debate sobre as políticas públicas e na informação sobre assuntos da atualidade”, analisa o professor Francisco Rolfsen Belda, do Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Unesp de Bauru.
Para Belda, que é mestre e doutor pela USP, “as localidades que não dispõem de fontes produtoras de noticiário local acabam tendo que recorrer a grandes meios de comunicação ou às notícias provenientes de outra localidade para minimamente se informar sobre o que se passa em sua região”. E isso, na visão do professor, não fragiliza apenas o debate público, mas o exercício da cidadania e da democracia. “Não há uma fiscalização, um acompanhamento minucioso, com a mediação crítica sobre os atos de interesse público”, assegura.
Quando não há a figura da reportagem que acompanha, participa, que investiga os atos do poder legislativo, do executivo e do judiciário, segundo o professor da Unesp, a população fica à mercê da informação oficial ou oficiosa que vai ser difundida muitas vezes na forma de propaganda dos atos do poder público. “Então, o jornalismo independente, apartidário, crítico, é um guardião dos interesses da população diante dos poderes de toda ordem. Não só o poder político, mas também o poder econômico que muitas vezes se exerce através da publicidade. É importante para o fortalecimento da democracia que haja uma atividade independente de imprensa local.”
De acordo com o pesquisador Dubes Sônego, os desertos ou quase desertos, muitas vezes, nunca tiveram acesso a jornais impressos, rádios ou outros meios de comunicação devido à falta de uma dinâmica econômica sustentável, já que a criação de um jornal envolve altos custos e uma infraestrutura complexa. “Um jornal é uma estrutura cara. Tem que ter uma rotativa (prensa), comprar papel e o papel tem que chegar lá. Então não é algo tão simples.”
Segundo o pesquisador, muitos dos jornais impressos com sede em cidades hoje classificadas como desertos foram fechados com o tempo, mas em alguns lugares, versões on-line desses veículos surgiram. De fato, a tecnologia e as mídias digitais trouxeram uma revolução na distribuição de notícias. “Ficou muito mais barato distribuir a notícia. Fazer um vídeo hoje é muito fácil. Criar um blog é fácil e barato, criar uma página de rede social para publicar notícias é rápido e barato.” Por isso, “apesar do número de desertos de notícias ser muito grande hoje no Brasil, ele vem diminuindo”, constata Sônego. O Atlas da Notícia aponta que 271 municípios brasileiros passaram a contar com, ao menos, um veículo de comunicação local e outros 15 voltaram a ser considerados desertos. No geral, houve uma redução de 8,6% nos desertos de notícias no País em 2023.
Mas é preciso ficar alerta para a necessidade de filtrar e coordenar essas informações em comunidades que desenvolvem meios de comunicação pela internet, alerta o professor Almeida. “A gente vive um momento de muita disseminação de fake news, de informações, senão falsas e maliciosas, muitas vezes incompletas ou incorretas.” Por isso, comunidades locais podem constituir espaços para filtragem das notícias. “Não filtragem no sentido propriamente ideológico, de censura, mas no sentido de veracidade, de precisão das informações que estão circulando ali naquele momento” conclui Almeida.
As redes sociais atuam como ferramentas de comunicação on-line, mas é preciso cuidado, também alerta o professor Belda. “As redes sociais, muitas vezes, fazem um papel importante para divulgar os acontecimentos, os eventos, dar voz às pessoas, às comunidades, divulgar a agenda cultural. Mas pela sua própria natureza, as redes sociais não suprem a ausência dos meios de comunicação locais que são comprometidos com as técnicas e os processos do jornalismo. Elas não favorecem a atividade de apuração que caracteriza a reportagem jornalística.”
Para o professor Belda, as fake news estão inseridas num espectro muito maior de fenômenos de desinformação. “Além dos discursos fraudulentos, falsificados, nós também temos nas redes sociais o chamado discurso do ódio, a informação insultuosa, muitas vezes caluniosa e difamatória que contempla também discursos ideológicos.” É uma situação que se agrava pelo fato de não existirem nos desertos noticiosos veículos de informação que possam fazer um contraponto às fake news, ressalta o professor Belda. “É uma situação preocupante que vem despertando a atenção de autoridades em todo o mundo, seja por vias regulatórias, de educação midiática ou de fortalecimento da atividade jornalística.”
Além das eleições, segundo Sônego, novas regulamentações ou pacotes econômicos que incluam uma indústria presente nessas cidades, por exemplo, podem passar despercebidos pela população, que pode não entender como essas mudanças impactam diretamente em suas vidas. “Se você tem uma mídia só em outra cidade e não o jornalismo local, ela talvez não se interesse em fazer uma matéria sobre aquilo que está acontecendo na vizinha”, afirma. O pesquisador diz, ainda, que cidades com diversidade de veículos de imprensa conseguem cobrir uma gama maior de assuntos com especificidade e detalhes do local. Em São Paulo, ele cita a presença de veículos especializados e iniciativas como a Agência Mural, que preenche a cobertura de regiões periféricas da capital. “Isso permite que as pessoas tenham mais informações, com um pouco mais de acuracidade e embasadas, para tomar suas decisões sobre a vida, avaliar o mundo e poder se posicionar politicamente.”
Segundo Almeida, a falta de jornalismo local envolve também a questão da memória histórica. “Esse vácuo informacional acaba prejudicando bastante os moradores, não só na percepção da realidade imediata que os cercam, mas também na própria constituição de uma memória, de uma identidade pessoal.”
O levantamento de dados para o Atlas da Notícia é realizado de forma colaborativa, envolvendo voluntários de todo o País. Sônego conta que, em geral, são procuradas universidades, especialmente faculdades de jornalismo, mas também de outras áreas, para buscar ajuda de voluntários, que se engajam no levantamento de dados. O trabalho é feito, geralmente de forma mais concentrada, no segundo semestre do ano.
Contatos são feitos com assessorias de imprensa dos municípios para identificar veículos locais desconhecidos, além de estabelecimentos comerciais e moradores para descobrir quais veículos de comunicação locais são lidos, ouvidos ou vistos. Nos quase desertos, Sônego afirma que tanto a checagem de veículos existentes quanto a busca por novos veículos são realizadas. As informações coletadas pelos voluntários são “acrescentadas ao banco de dados, verificadas pelo coordenador de cada região, re-checadas e aprovadas”, antes que sejam de fato incluídas no banco de dados e tornem-se públicas, comenta o jornalista.
Por: Felipe Faustino e Ferraz Junior