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O desabafo é de uma professora da rede pública de São Paulo, que diz ter chegado ao seu limite: está desesperada por ter de lidar com crianças que não seguem regras nem aceitam a autoridade (mesmo que respeitosa) dos docentes.
Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, Rebeca Café, de 29 anos, atribui esse caos à “educação permissiva”. É a aplicação malsucedida da “educação positiva”, que está em voga nas redes sociais por pregar noções de respeito, diálogo e negociação na educação dos filhos, sem autoritarismo
Para a professora, a tentativa de os pais “camuflarem” as regras e sempre permitirem que a criança tome decisões está inviabilizando o trabalho dos professores. São casos em que os familiares, em vez de falarem, por exemplo, “João, é hora de almoçar”, dizem: “João, você prefere almoçar com o garfo amarelo ou com o azul?”.
Ao g1, Rebeca conta que não se opõe à educação respeitosa — inclusive, chega a aplicá-la com o filho, em casa. Mas percebe que uma interpretação errada do conceito está tomando a internet e gerando indivíduos com dificuldade de viver em sociedade. Os alunos não aceitam mais, por exemplo, que haja um horário fixo para terminar o recreio, mesmo que outra turma precise ocupar o parquinho em seguida.
“Só no ‘achismo’, sem o embasamento correto, teremos a permissividade. Em casa, a criança não sabe mais o que é regra e o que é autoridade. Na escola, portanto, não vai entender que existem normas e que os adultos são responsáveis por ela. Vira uma pessoa egocêntrica, que não se desenvolve bem no coletivo e que quer toda a atenção para si. Atrapalha o rendimento dos colegas”, afirma Rebeca.
Descubra seu perfil como pai/mãe e, em seguida, entenda:
Segundo a pedagoga Ariella Warner, especialista na abordagem cognitivo-comportamental na infância e na adolescência, a educação positiva nasceu para se opor à educação violenta, à opressão e ao silenciamento das crianças. Deixar de castigo, fazer ameaças, gritar ou usar força física são práticas que devem ser abandonadas.
“O problema é que as pessoas que pregam essa filosofia do respeito estão se perdendo no personagem. Confundem ser ‘respeitoso’ com ser ‘permissivo’. Precisamos fazer as pazes com a nossa autoridade e entender que estamos guiando nossos filhos, dando a mão para eles e mostrando o caminho”, diz.
“Isso é diferente de ir andando atrás deles e reduzindo os danos. É importante fugir do autoritarismo, mas sem esquecer que as crianças não têm maturidade para gerenciar tudo”, afirma.
Maya Eigenmann, neuropedagoga focada em educação positiva, acrescenta que os adultos devem ser os guias das crianças, sempre estabelecendo limites.
“Não posso me ausentar das minhas responsabilidades e deixar uma criança que ainda está em desenvolvimento ‘largada’. Para se sentir segura, ela precisa de referências e de um adulto em quem confie”, afirma.
Está na hora do banho.
Você pergunta: “João, prefere tomar banho agora ou daqui a 5 minutos?”
Está na hora do almoço, e a criança necessita de mais ferro na alimentação.
“João, você prefere comer feijão ao lado ou em cima do arroz?”.
São formas de disfarçar as regras, para que a criança as obedeça ao sentir que está tomando decisões importantes.
Isso é educação positiva? Não. É educação permissiva, explica Warner.
“Isso não é uma negociação com a abordagem correta. É possível ter um diálogo, mas sem abrir mão da regra. Por exemplo: ‘precisamos tomar banho; vamos pensar em um jeito divertido? Que tal levar seus pratinhos para o chuveiro? Tem outra ideia?’. Se a criança não entrar no jogo, terei de dizer: ‘Puxa, você não está mesmo no clima de um banho divertido. Vamos, então, tomar o banho normal mesmo.”
O importante, afirma a pedagoga, é não abrir mão de que é, sim, hora de ir para o chuveiro.
“Se chorar, a gente espera, acalma, diz que está tudo bem e explica que, mesmo depois do banho, os brinquedos continuarão ali. É preciso ‘congelar’ a cena, ser carinhoso e acolher.”
Quando a criança estiver mais “regulada”, deve cumprir a ordem dos pais, sem negociações de “mais 5 minutinhos” ou “só mais um desenho animado”.
“Elas precisam aprender a negociar, sim, mas não de um jeito fake. Se você quiser ouvir Beatles no carro, mas ela preferir Galinha Pintadinha, dá para chegar a um consenso e colocar 5 músicas de cada. Isso é negociação. Mas se for uma ordem disfarçada, não faz sentido. Ela precisa entender que existem regras”, reforça a pedagoga Warner.
De acordo com a psicóloga Rita Calegari, os pais andam tão preocupados em não desagradar aos filhos que evitam ao máximo qualquer tipo de embate. Não querem que sintam raiva deles. É uma geração de pais inseguros, que foram muito reprimidos na infância e que agora, para não repetir os mesmos erros dos quais foram vítimas, vão para o outro extremo, diz a especialista.
“Se a criança não obedecer, uma coisa é bater nela [que seria algo autoritário e agressivo]. Outra é aceitar que ela não está feliz, acolher o choro, dar um abraço e manter a orientação inicial, sem voltar atrás. Os pais que evitam embate acabam criando indivíduos sem resiliência”, afirma.
A palavra “autoridade” não significa “autoritarismo”, ok? É possível estabelecer que os adultos são os “guias” da criança, que vão dar as orientações corretas para que ela esteja sempre em segurança, sem que essa “hierarquia” venha acompanhada de gritos, ameaças e castigos.
Se, em casa, os filhos não entenderem que precisam obedecer aos pais, não será na escola que respeitarão os professores, afirma Warner.
“É uma transferência de autoridade. É a professora que deve ser ouvida. A criança pode perguntar, dialogar, mas o que for dito precisa ser aceito. Caso não haja esse tipo de relação em casa, ela vai ficar totalmente desregulada nas frustrações do dia a dia”, afirma a pedagoga.
Aí é que entra o caos descrito pela professora no vídeo que viralizou.
Imagine só, em uma escola pública, 30 alunos de 9 anos que, ao mesmo tempo, dizem que não vão aceitar que acabou a hora do recreio. Todos querem negociar mais 10 minutos ou mais uma brincadeira.
“Fica inviável para a gente, com salas superlotadas. Não dá para lidar com essas demandas socioemocionais, apagando incêndios o tempo todo. Precisamos dar conta de ensinar o conteúdo, de preencher todas as plataformas do governo, de medir o desempenho da turma, de incluir alunos atípicos… Conciliar tudo isso com crianças que não aceitam regras leva ao nosso colapso. Não estamos dando conta”, afirma Rebeca ao g1.]
“Não tem como, sem um professor auxiliar ou sem um apoio para a inclusão, colocar em prática essa negociação a todo tempo. Existem questões de funcionamento da sociedade. Na vida adulta, nem tudo será negociado”, diz.
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É importante abraçar seu filho e ouvi-lo, mas sem abrir mão das regras — Foto: Pexels