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Halima (nome alterado) viveu em vários campos para pessoas deslocadas desde que se lembra. Toda vez que ela acreditava que tinha encontrado um lugar seguro, outro ataque acontecia, fazendo-a se deslocar inúmeras vezes.
As lembranças da vida sob estresse constante não a deixam dormir, diz ela à DW.
Em junho de 2023, as Forças de Apoio Rápido (FAR) – grupo paramilitar formado principalmente por milicianos da Janjawid, conhecidos por combater grupos étnicos insurgentes em nome do Exército – atacaram a área onde Halima vivia com a família em El Geneina, a capital de Darfur Ocidental.
Ela ouviu os milicianos chegarem em suas motocicletas. "Eles me encontraram em meu quarto", relata. "Quatro deles me ameaçaram com armas. Um deles me estrangulou e me estuprou."
Halima sofreu vários ferimentos, mas conseguiu escapar ao cruzar a fronteira com o Chade. Lá ela se sentiu segura, mas não conseguiu encontrar a ajuda médica de que tanto precisava depois da violência que passou.
Muitas mulheres e crianças refugiadas no Chade falaram sobre o assunto, e os relatos de violência sexual dentro dos acampamentos também têm aumentado.
A maioria das pessoas que fugiu da fronteira de um Sudão devastado pela guerra está agora em campos no leste do Chade, em lugares como Adre.
Halima é uma delas. Ela acredita que a FAR a estuprou principalmente por ela pertencer ao grupo étnico Massalit, que era maioria da cidade de El Geneina até ser atacado brutalmente no ano passado.
Outra jovem do acampamento, Hadija (nome alterado), tem a mesma impressão de Halima.
Ela se lembra de como seu agressor perguntou a que etnia ela pertencia. "Eu não disse que era Massalit, eu disse que pertencia aos Fur."
Ele ameaçou matá-la se ela fosse Massalit, acrescentando que os Massalit jamais seriam donos de qualquer terra no Sudão no futuro.
Hawa (nome alterado) sobreviveu a um ataque semelhante em junho de 2023.
Ela conta à DW que um integrante da FAR entrou na casa dela e atirou em seu primo de 20 anos. Em seguida, ela ouviu a mãe e a tia serem espancadas.
"Eu apanhei também, com um chicote, uma vara. Depois, ele me jogou na cama e me estuprou".
Hawa só conseguiu encontrar um hospital dias depois. Ela precisou tomar pontos após o ataque e ainda sente dor ao caminhar.
As histórias de mulheres que sobreviveram à violência são documentadas pela ONG internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch. A entidade alerta que o que acontece com o povo Massalit em Darfur Ocidental pode ser um genocídio.
Procurada, A FAR não quis se pronunciar.
Em um relatório sobre violência baseada em gênero publicado no final de 2023, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur) informou que mulheres e meninas no Sudão tiveram de suportar o peso das consequências do conflito no país, incluindo um aumento "alarmante" nos casos de violência sexual.
Muitas das pessoas que buscam asilo em outros lugares dizem que sofreram ou testemunharam assédio, sequestro, estupro, agressão sexual, exploração sexual e outras formas de violência durante suas jornadas em busca de segurança.
Há mais de um ano, as Forças Armadas do Sudão têm lutado contra a FAR em uma batalha brutal pelo controle do país.
O conflito forçou milhões de pessoas a fugirem de suas casas desde abril de 2023, elevando o número de pessoas deslocadas para cerca de 12 milhões até junho de 2024.
O Comitê Internacional de Resgate (IRC) informa que mais de 2 milhões de pessoas buscaram refúgio em países vizinhos desde o início do conflito. Mas a grande maioria delas permanece no Sudão – mais de 10 milhões de pessoas, o equivalente à praticamente a população inteira do Rio Grande do Sul. Trata-se da maior crise de deslocamento do mundo.
As organizações de ajuda humanitária destacam que há uma enorme escassez de financiamento para lidar com a crise no Sudão e em toda a região.
Abdirahman Ali, diretor nacional da ONG CARE International para o Sudão, confirma o rápido aumento da taxa de violência de gênero relatada em todo o país, especialmente nas áreas que testemunham maior violência, como Darfur, Cartum e o estado de Al Jazirah.
Segundo ele, a violência contra meninas e mulheres continua, principalmente nos campos de refugiados, e está sendo exacerbada por dificuldades na entrega emergencial de alimentos, água e assistência médica.
O maior desafio, afirma Ali, é transportar suprimentos de saúde e nutrição através da fronteira do Chade com o Sudão para os deslocados internos.
"Há muitas áreas onde não podemos acessar ou mesmo prestar assistência devido ao conflito em curso e às restrições que impedem trabalhadores humanitários de chegar às pessoas necessitadas", relata.
De acordo com o IRC, 90% das pessoas que cruzam as fronteiras da região em busca de segurança são mulheres e crianças. Uma em cada cinco dessas crianças pequenas sofre desnutrição aguda.
O apoio psicológico às pessoas afetadas pela violência de gênero também é difícil de obter, diz Ali: "Há vários deslocamentos. Comunidades e refugiados se mudam de um local para outro, o que dificulta os esforços para fornecer apoio contínuo à população."
Antes do início do conflito, o Sudão já passava por uma grave crise humanitária causada pela instabilidade política de longo prazo e pelas pressões econômicas no país.
A guerra apenas agravou essas condições, deixando quase 25 milhões de pessoas – mais da metade da população do Sudão – em situação de necessidade, de acordo com o IRC.
Mais de 600 mil pessoas cruzaram a fronteira com o Chade, que já abrigava 400 mil refugiados sudaneses antes da eclosão do conflito, em abril de 2023.
É por isso que o IRC também expandiu os serviços de apoio para os refugiados sudaneses nos países vizinhos além do Chade, incluindo Uganda, Etiópia e Sudão do Sul.
Abdirahman Ali, da CARE International, exige que as partes envolvidas no conflito cumpram suas obrigações de acordo com o direito humanitário internacional para proteger as populações civis e a infraestrutura.
Para que a situação dos direitos humanos melhore, explica, os trabalhadores humanitários que prestam assistência também precisam receber garantias.
"É necessário que as partes em conflito se dirijam à mesa de negociações e garantam que essa crise seja interrompida", diz ele. "Ela está causando um sofrimento humano indescritível ao povo do Sudão".
Apesar do trauma, Hawa e Halima esperam voltar às suas vidas anteriores; Hawa sonha em concluir seus estudos em economia para trabalhar "como contadora ou administradora de empresas".
Halima também quer retomar os estudos. "Se a situação melhorar, quero ir para a universidade", conta. "Sou parteira, mas quero me tornar médica".