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Todos os dias, ônibus conduzidos por voluntários viajam entre a cidade de Sumy, no nordeste da Ucrânia, e a fronteira com a Rússia. Eles vão buscar ucranianos que decidiram deixar para trás suas casas em território ocupado pelos russos e cruzaram o único posto de fronteira atualmente aberto entre os dois países, localizado entre a vila ucraniana Pokrovka e o vilarejo russo de Kolotilovka.
Desde abril de 2022, esse trajeto é um corredor humanitário pelo qual os ucranianos em regiões controladas por Moscou podem chegar ao território controlado por Kiev.
Há onze pessoas e um cachorro no ônibus que segue para Sumy, na sua maioria mulheres e idosos, mas também há dois adolescentes. Alguns olham cansados pela janela, outros cochilam. Alguns estão viajando há vários dias.
Parte do trajeto é feito por uma "zona cinza" de dois quilômetros de extensão entre Kolotilovka e Pokrovka, que precisa ser atravessada a pé, carregando seus pertences. Como os jornalistas não têm permissão para entrar em Pokrovka, só é possível falar com as pessoas no ônibus para Sumy.
"Todos foram em frente, mas eu era mais lento", diz o aposentado Viktor, da região de Lugansk, sobre a sua jornada pela "zona cinza". Ao lado dele no ônibus há uma cadeira de rodas dobrada. O homem teve as duas pernas amputadas – uma até a coxa e a outra até o joelho.
Ele deu sua cadeira de rodas à esposa, Lyudmila, para que ela transportasse a bagagem pela "zona cinza", enquanto Viktor seguiria rastejando pelo trecho, com a ajuda de uma plataforma improvisada feita de almofadas e hastes de madeira – mas os dois quilômetros se mostraram muito difíceis. "Assim que cruzei a fronteira, percebi que não conseguiria", diz.
Quando Lyudmila chegou ao posto de controle ucraniano, ela pediu ajuda aos voluntários que têm permissão para entrar na "zona cinza" e que, todos os dias, buscam ucranianos lá, juntamente com a Cruz Vermelha.
Eles encontraram Viktor em uma cadeira de rodas e o ajudaram a chegar ao lado ucraniano. No ônibus para Sumy, o aposentado disse: "O que uma pessoa pretende fazer nem sempre corresponde às suas habilidades. Mas minha vontade era tão forte que simplesmente segui em frente."
Em 2014, Viktor e Lyudmila deixaram a parte ocupada da região de Lugansk e se mudaram para o vilarejo de Tsaryovka, que ficava na região controlada por Kiev. Eles compraram uma casa, reformaram-na e plantaram um jardim. Viktor, que perdeu seus membros anos atrás devido a uma doença vascular, cuidava da casa. Mas apenas alguns dias após o início da invasão russa de fevereiro de 2022, o vilarejo foi ocupado.
Em Pokrovka, na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, as autoridades verificam os documentos e os pertences das pessoas que vêm dos territórios ocupados. "Eles também pesquisam em bancos de dados", diz Roman Tkach, da guarda de fronteira.
Em seguida, o ônibus leva as pessoas a um centro de voluntários em Sumy, onde são entrevistadas pelas autoridades ucranianas e registradas pelos serviços sociais. Lá, elas recebem ajuda com todos os tipos de documentos, um chip de celular com número ucraniano e almoço.
Em seguida, os voluntários levam as pessoas para um abrigo onde elas podem tomar banho, dormir e permanecer por vários dias. Depois, elas podem viajar gratuitamente de trem para Kiev, Poltava, Kharkiv ou Dnipro. E todos já sabem para onde irão em seguida.
O aposentado Mychajlo, que era motorista de ônibus, quer se juntar à sua filha Anna na cidade de Kharkiv. O homem vem do vilarejo de Tavolzhanka, que fica na parte ocupada da região de Kharkiv. Ele viveu lá por 40 anos, mas sua casa está sob fogo cruzado. "Há drones e soldados russos para onde quer que você olhe. Eles arrastaram tudo para fora das casas e as desmontaram, como portas, revestimentos de piso e carpetes, porque estão construindo abrigos para si mesmos", diz o aposentado, com raiva.
Ele descreve muitos de seus antigos vizinhos como "colaboradores", e diz que muitos deles já se mudaram para a Rússia. Mychajlo enfatiza ter recusado a oferta de receber um passaporte russo.
Anastasia, de 18 anos, deixou a parte da região de Kherson ocupada pela Rússia junto com seu namorado Petro (nome alterado). Petro completou 18 anos em dezembro e recebeu uma convocação do exército russo em março. "Decidimos fugir porque tinha medo de que ele fosse convocado", diz Anastasia. Ela deixou sua mãe, seu irmão de sete anos e sua avó de 80 anos em casa.
Anastasia encontrou seu pai, que está servindo ao exército ucraniano, em Sumy. Ele havia se alistado em dezembro de 2021 e estava destacado na região de Chernihiv quando a invasão russa em grande escala começou, e sua família em Kherson ficou subitamente sob ocupação russa. Agora ele vê sua filha novamente pela primeira vez em mais de dois anos. Os dois choram e se abraçam por um longo tempo.
"Alguém da aldeia delatou que meu pai era militar", lamenta Anastasia. Os homens, que Anastasia descreve como representantes do serviço secreto russo FSB, vieram e exigiram ver as mensagens trocadas com ele. "Eu as havia deletado há muito tempo e disse que não estava em contato com ele", diz Anastasia, acrescentando que "o FBS" havia pressionado sua família a solicitar passaportes russos. "Eles ameaçaram que, se não tivéssemos passaportes russos em duas semanas, seríamos detidos ou algo mais seria feito conosco. Eles tiraram fotos e nossas impressões digitais e interrogaram minha mãe. Foram muito severos", lembra Anastasia. Ela e seu namorado Petro irão morar com seus avós paternos, que moram na região de Poltava.
Atualmente, todos os dias, de 20 a 40 pessoas das partes ocupadas das regiões de Donetsk, Lugansk, Kharkiv, Kherson e Zaporizhzhya, bem como da península ucraniana da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, usam o corredor humanitário Kolotilovka-Pokrovka, diz Roman Tkach, da guarda de fronteira ucraniana.
Cruzar a fronteira só é possível durante o dia e somente em uma direção – da Rússia para a Ucrânia – e apenas para cidadãos ucranianos. É necessário ter um passaporte ou outra forma de identificação. Mas mesmo que você não tenha um, os funcionários não podem recusar a entrada de cidadãos ucranianos. "Os cidadãos ucranianos têm o direito constitucional de entrar no território da Ucrânia", diz Tkach. Apesar do atual aumento dos bombardeios na região, o corredor permanece aberto, e ninguém foi ferido nele até o momento.
De acordo com o casal, restam apenas alguns moradores pró-ucranianos em Tsaryovka. Os que permanecem fizeram as pazes com os ocupantes. Lyudmila diz que ela e seu marido não querem um passaporte russo. Por isso, afirma, eles não conseguiam mais ser atendidos no hospital local.
Viktor e sua esposa hesitaram por muito tempo antes de fugir, pois sabiam que seria difícil para Viktor. Para ir de uma região controlada por Moscou até a parte da Ucrânia controlada por Kiev, primeiro é preciso viajar pela Rússia até um país europeu. Entretanto, diz Viktor, isso seria muito demorado e caro para eles, e a travessia Kolotilovka-Pokrovka era a única opção para o casal.
As checagens na fronteira foram rápidas. Viktor está feliz e com lágrimas nos olhos: "Só senti tanto carinho assim de minha própria mãe. É como estar entre amigos agora!" Viktor e Lyudmila pretendiam continuar sua jornada até Kiev, onde seus filhos e uma neta nascida há poucos meses os aguardavam.