Soldados embriagados mortos após explodirem acidentalmente uma granada. Jatos de combate depositando bombas em áreas ocupadas por compatriotas. Militares desesperados que disparam a esmo e atingem seus próprios companheiros. Todos esses episódios ocorreram na guerra da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, e foram protagonizados pelas tropas da Rússia. E eles deixam claro que as mortes autoinfligidas contribuem para inflar o número de baixas russas no conflito, conforme Moscou se recusa a divulgar dados oficiais de mortos e feridos.
Embora não haja estatísticas amplas sobre o número de russos mortos por seus próprios colegas, um levantamento feito pela revista Newsweek em agosto do ano passado dá ideia do tamanho do problema. Desde o primeiro dia de combates até 17 de agosto de 2023, a reportagem apurou que 21,7% das baixas registradas na Força Aérea russa ocorreram devido a questões internas diversas, como problemas mecânicos, falha humana, fogo amigo ou acidentes não provocados.
Embora na maioria dos casos as mortes pareçam acidentais, testemunhas sugerem que militares russos foram motos por seus companheiros também de forma intencional. Em dezembro de 2022, um soldado revelou ter testemunhado a execução de seus companheiros de tropa pelo simples fato de terem demonstrado medo no campo de batalhas.
“No primeiro ataque, eu era do segundo grupo. A equipe de evacuação estava à minha frente. Havia dois indivíduos lá que estavam com medo. Era a primeira vez deles na guerra. E então esses dois foram ‘anulados’ na base”, disse Vladislav Izmailov. “Foram simplesmente baleados e enterrados”.
A declaração viralizou em canais ucranianos do aplicativo de mensagens Telegram. Mais tarde, a agência de notícias russa independente Nestka identificou Ismailov como um ex-presidiário de 26 anos que ingressou no conflito através da campanha russa de recrutamento de criminosos condenados.
O combatente contou que foi recrutado pela organização paramilitar Wagner Group para aumentar o efetivo no país invadido. Ele assinou um contrato de seis meses em troca de liberdade e isenção de punição criminal, como também fizeram 300 detentos na prisão em que ele cumpria pena.
Viktor Sevalnev, também recrutado na prisão pelo Wagner Group, foi uma das possíveis vítimas de seus próprios colegas de batalhão. Ele morreu após a deserção em massa da unidade que liderava em território ucraniano, e a suspeita é de execução. Antes de morrer, o ex-presidiário havia revelado que foi ameaçado de execução após a debandada dos soldados que estavam sob seu comando.
Ainda no final de 2022, o jornal independente The Moscow Times afirmou que ao menos 40 prisioneiros russos recrutados pelo Wagner Group haviam sido executados até então pelos mercenários. A informação foi repassada ao periódico por Olga Romanova, chefe da organização Rússia Atrás das Grades, de Moscou, que luta pelos direitos dos presos no país.
Se as execuções expõem a crueldade dentro do sistema militar russo, os acidentes deixam claro que muitos combatentes não estão devidamente preparados para lutar. Isso transpareceu em setembro do ano passado, quando diversas fontes anunciaram a morte de três soldados que, embriagados, teriam acionado acidentalmente uma granada e morrido na explosão.
O primeiro veículo a revelar a história foi o Astra, um popular canal informativo russo do Telegram. Mais tarde, a informação foi confirmada pelo canal VChK-OGPU, da mesma rede social, cujos autores mantêm fontes nas Forças Armadas russas.
A agência estatal Tass anunciou posteriormente que três pessoas morreram em virtude da explosão de uma granada na cidade de Rossosh, em Voronezh, mas não informou se as vítimas eram militares, nem disse em que circunstâncias ocorreram as mortes.
O site russo Bloknot também noticiou o incidente, dizendo que ele ocorreu em um imóvel residencial que era alugado por cinco homens. Pessoas ouvidas pelo veículo informativo dizem que os homens faziam um churrasco e que houve uma discussão pouco antes da explosão, que teria ocorrido fora da casa.
Por sua vez, o VChK-OGPU explicou que os mortos eram sapadores, que são encarregados de tarefas de engenharia militar, como limpar campos minados, construir pontes e realizar detonações direcionadas. Os três também tinham a incumbência de comprar equipamento militares, por isso tinham as granadas.
O descuido com granadas custou a vida de outros três combatentes em janeiro do ano passado, de acordo com a Tass. O responsável, então, foi um sargento que teria detonado o explosivo dentro de um dormitório.
“De acordo com dados atualizados, três militares foram mortos e outros 15 ficaram feridos”, disse uma fonte cuja identidade não foi revelada. “A causa preliminar da explosão é o manuseio descuidado da munição.”
Em agosto de 2023, o The New York Times relatou outro problema que vem custando a vida de soldados russos, este ligado à inexperiência de membros da artilharia. Um combatente ucraniano, vice-comandante de batalhão na guerra, disse ao jornal que é comum ver russos mortos por fogo amigo, garantindo assim uma vantagem adicional às tropas de Kiev.
O militar, identificado apenas pelo apelido Kherson, diz que muitas vezes os russos se desesperam quando observam o avanço inimigo no campo de batalhas. E relatou um episódio em que isso ocorreu, na aldeia de Neskuchne, ainda no início da contraofensiva ucraniana.
“Os russos tentaram contra-atacar, tentaram nos espremer, nos cercar. Mas tudo aconteceu como imaginávamos”, disse ele, contando que os mísseis disparados desde a retaguarda para neutralizar os ucranianos acabaram atingindo os próprios russos. “Eles enterraram muitos dos seus próprios rapazes.”
Um caso semelhante, este reportado pela revista Newsweek, teria levado a duas mortes já neste mês de janeiro. No campo de treinamento militar de Kuzminsky, região russa de Rostov, um operador de arma antiaérea teria confundido os exercícios de seu batalhão com uma invasão ucraniana, abrindo fogo contra os próprios homens.
Através do Telegram, o canal Kremlin Snuffbox informou que o soldado responsável pelas mortes havia acabado de retornar de uma grande missão na Ucrânia e estava em serviço por 14 horas seguidas. Já as vítimas estavam em treinamento e sequer tiveram tempo de participar da guerra efetivamente.
A Força Aérea da Rússia também cometeu deslizes recentes, embora Moscou alegue que não houve vítimas em dois episódios. Na semana passada, um avião de guerra lançou uma bomba sobre uma cidade na região de Luhansk, leste da Ucrânia, controlada por forças apoiadas pelo Kremlin.
Através do Telegram, o líder da região separatista de Luhansk, Leonid Pasechnik, afirmou que, durante operações militares, “uma aeronave da Força Aérea russa realizou uma liberação de emergência de uma ogiva FAB-250 sobre a cidade de Rubizhne.”
Foi o segundo incidente do tipo somente neste mês, depois de outro jato realizar uma “liberação de emergência” de sua carga explosiva sobre o vilarejo de Petropavlovka, na região de Voronezh.
Embora não tenha havido vítimas na explosão resultante do alegado descarte acidental de munições de aviação, pelo menos seis imóveis foram danificados em Petropavlovka, que fica perto da fronteira com a Ucrânia, cerca de 600 quilômetros ao sul de Moscou.
O governo russo admitiu o ocorrido, segundo a Newsweek. “Está em curso uma investigação sobre as circunstâncias do incidente. Uma comissão está trabalhando no local para avaliar a natureza dos danos e ajudar na restauração dos edifícios”, disse o Ministério da Defesa em comunicado.
A Referência