A
professora de idiomas Isabel*, de 22 anos, se mudou há cerca de dois meses da
cidade onde morava, no interior de São Paulo, para viver na capital paulista.
Deixou para trás pessoas próximas, alunos e a vida que construiu nos últimos
anos. Do dia para a noite, juntou suas roupas e foi embora, sem data para
voltar. No município interiorano, somente dois amigos sabem o motivo do sumiço
repentino.
A mudança foi planejada depois que
ela se ofereceu para ser barriga de aluguel. Isabel havia anunciado no Facebook
o interesse em gerar um bebê para outra pessoa. Meses depois, estava em São
Paulo, realizando exames para carregar em seu ventre o filho de um casal que
respondera a seu anúncio na rede social.
Os exames apontaram que Isabel, que
não tem filhos, está apta para a gestação. O casal e a jovem firmaram um acordo
informal - sem nenhum tipo de contrato - para que ela seja barriga de aluguel.
Os pais da criança se comprometeram a arcar com os custos da gravidez e com a
estada da jovem em São Paulo, além do pagamento de R$ 40 mil. "Eu não
estipulei nenhum valor, eles que propuseram esse montante", diz a
professora.
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minha vida
Foi justamente a expectativa de
retorno financeiro que fez Isabel se oferecer como barriga de aluguel. "Eu
não tenho muita coisa na vida. O meu pai nunca foi presente, e a minha mãe me
abandonou quando eu era criança. Então, esse dinheiro vai me ajudar a dar
entrada em uma casa e a começar uma faculdade."
A prática de barriga de aluguel - ou
gestação de substituição - só é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina
(CFM) quando não possui fins lucrativos. Em caso de parentesco de até quarto
grau entre a gestante e o casal ou a pessoa que ficará com o bebê, não é
necessária autorização. Se não houver parentesco entre as partes, é preciso que
a gestação seja autorizada pelo Conselho Regional de Medicina (CRM).
Esse tipo de gestação é viabilizado
via fertilização in vitro, para que os materiais genéticos não sejam da
gestante. O óvulo e o espermatozoide utilizados podem ser dos pais que ficarão
com o bebê ou obtidos em bancos de doadores anônimos.
Conforme resolução publicada pelo CFM
no ano passado, caso envolva dinheiro, a barriga de aluguel é considerada
criminosa - o argumento é de que, constitucionalmente, é proibido no país
trocar órgãos ou tecidos por dinheiro. A prática pode culminar em penas de três
a oito anos de prisão, além de multa. As punições são aplicáveis aos pais ou à
mulher que gerou a criança.
A despeito disso, diversas mulheres
se oferecem como barriga de aluguel em páginas e grupos de redes sociais - o
maior deles, no Facebook, possui 3,3 mil membros. Cobra-se de R$ 15 mil a mais
de R$ 100 mil, além de despesas com a gravidez e estada quando necessário.
Grande parte das mulheres que
anunciam a si mesmas nas redes sociais demonstra ter conhecimento de que a
prática é considerada ilegal no Brasil. Para elas, a barriga de aluguel não
deveria ser criminalizada.
"É triste que seja
considerado crime, porque não vejo problemas. As pessoas estão pagando para a
gestante, por ela colocar a vida em risco. Enquanto os pais realizam o sonho de
ter o bebê, a barriga de aluguel também precisa receber algo em troca",
argumenta Isabel.
"(Eu e o casal contratante) não queríamos
correr o risco de o Conselho de Medicina não aprovar, então optamos por não
solicitar a permissão. Mas não vejo como algo errado o que estou fazendo. São
apenas pessoas querendo ajudar as outras, cada uma da sua forma."
Recompensa financeira
A carioca Juliana* trabalha como atendente em
uma rede de lanchonetes e se ofereceu para o procedimento para conseguir
reformar a casa em que mora com o marido e os filhos.
"Eu não tenho de onde tirar dinheiro. Não
trabalho com carteira assinada, e o salário que ganho é apenas para a gente se
manter. Meu marido não está trabalhando, então a nossa situação está
complicada", diz.
Juliana teve cinco filhos. Sem condições
financeiras para criá-los, ela entregou duas crianças para adoção. Depois,
tentou fazer laqueadura pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas o procedimento
somente é permitido para mulheres com mais de 25 anos (ela tem 24).
"Então, decidi tentar gerar o filho de outras pessoas, porque preciso de
dinheiro", comenta.
A atendente planeja cobrar R$ 30 mil pelo
procedimento, caso apareça algum interessado. "É um preço que considero
justo."
Entre aqueles que buscam uma barriga de
aluguel nas redes sociais, há tanto solteiros quanto casais homossexuais e
heterossexuais.
O paulistano Augusto* está casado há dez anos
e decidiu procurar uma barriga de aluguel porque sua mulher tem problemas de
saúde que a impedem de engravidar. "Já encontrei algumas mulheres, mas
ainda estamos avaliando para decidir qual delas fará a gestação do nosso
filho", diz. Ele prefere não dizer o quanto está disposto a pagar.
Nos grupos, há mais postagens de mulheres se
oferecendo como barriga de aluguel do que de pessoas interessadas em pagar.
"Muitas pessoas me procuraram, mas eu não sentia segurança", diz
Isabel. "Há muita gente mal-intencionada nesse meio, por isso é importante
estar atenta. Também existem algumas mulheres que se oferecem como barriga de
aluguel mas não passam confiança, e isso prejudica as outras", acrescenta.
Ela só sentiu confiança mesmo com o casal de
São Paulo para o qual ela fará a barriga de aluguel. "Há mais de dez anos
eles estudavam essa possibilidade, porque a mulher teve complicações durante o
parto do filho deles e precisou retirar o útero. O casal entrou em contato
comigo e dias depois me chamou para fazer os exames em uma clínica, para ver se
eu poderia engravidar. A partir de então, percebi que era algo seguro."
Juliana afirma que, desde que publicou seu
anúncio, passou a receber diversas mensagens no Facebook e no WhatsApp.
"Ninguém se interessou, de fato, ainda. Eu até conversei com um casal, mas
não confiei muito, porque estava tudo muito fácil. Eles estavam aceitando todas
as condições que eu impunha. No fim, acabou não indo adiante."
Em alguns casos, as mulheres
afirmam terem sido lesadas. A mineira Laura*, de 24 anos, que quer usar o
dinheiro da barriga de aluguel para pagar a faculdade de enfermagem, chegou a
gastar R$ 500 em exames que comprovassem que está apta a engravidar. Mas o interessado
no procedimento desapareceu.
Mãe de um garoto de quatro anos, ela chegou a
desanimar com o prejuízo, mas não desistiu. "Se me pagarem os R$ 80 mil
que eu peço e eu sentir confiança, posso fazer. Caso contrário, não faço
mais."
Além das mulheres que utilizam a barriga de
aluguel para fins lucrativos, há também, embora em menor quantidade, aquelas
que se oferecem como barriga solidária - ou útero de substituição - e afirmam
que não pretendem cobrar pela gestação. Apenas pedem que os interessados paguem
os custos da gravidez.
"O meu objetivo é ajudar um casal a
realizar o sonho de ter filhos", afirma uma jovem.
Mas há quem duvide dessas intenções delas.
"Eu acho que isso é fachada - pode até existir, mas é bem raro. Muitas que
se dizem barrigas solidárias acabam cobrando. Ninguém vai passar por um risco
desses, de graça, por um completo desconhecido", diz Isabel.
Em razão do valor cobrado pelas mulheres,
considerado alto por quem busca o procedimento, e da insegurança, por ser uma
prática ilegal, os casos concretizados costumam ser poucos. "Conheço um ou
outro caso que deu certo. Além disso, não são muito divulgados", conta uma
das participantes do grupo.
A gravidez
Enquanto se prepara para ser fertilizada,
Isabel tem ingerido doses de ácido fólico para auxiliar na gravidez. Antes de
passar pela fertilização in vitro em uma clínica paulistana, a jovem também
deverá tomar injeções de hormônios para preparar o útero e aumentar as chances
de o procedimento dar certo.
A clínica e os médicos responsáveis por
acompanhá-la não sabem que se trata de uma barriga de aluguel. Para evitar
suspeitas, ela costuma comparecer sozinha às consultas e exames. "Algumas
vezes o pai da criança pede para me acompanhar. Eu me apresento como mulher
dele", diz.
A professora também tem recebido
acompanhamento psicológico. "Eles (casal) pediram que eu fizesse essas
sessões para compreender que a criança não vai ficar comigo depois que nascer.
Eu já tenho isso resolvido comigo e sei que não haverá problemas depois do
nascimento", afirma.
Isabel tem sido sustentada financeiramente
pelo casal. Entretanto, evita a proximidade. "Eles têm me apoiado e
disseram que vão me ajudar a pagar um curso técnico que pretendo fazer, para eu
não ficar parada durante a gravidez. Eles sempre querem saber de tudo, como
está a minha saúde e como estão sendo meus dias. Mas a gente está optando por
manter certo afastamento, porque encaro isso como uma relação
profissional."
Procedimento ilegal
A resolução publicada pelo CFM no ano passado
- na qual é destacada a criminalização da barriga de aluguel com fins
lucrativos - foi considerada mais branda que as de períodos anteriores. O texto
passou a permitir que parentes de terceiro ou quarto grau (tia, sobrinha ou
prima) possam gerar as crianças. Nos decretos anteriores, somente familiares de
até segundo grau - mãe, filha, avó ou irmã - poderiam ser útero de
substituição.
Diretor da Sociedade Brasileira de Reprodução
Assistida (SBRA) e membro do CFM, o ginecologista Adelino Amaral Silva destaca
que a gestação de substituição somente é permitida a casais heterossexuais
quando há um problema médico que impeça a gravidez da mulher. Outros casos nos
quais também são permitidos os procedimentos são em união homoafetiva ou pessoa
solteira - esta última passou a ser permitida na resolução de 2017.
"Quando o útero de substituição será de
uma pessoa com laços familiares até quarto grau com a mulher ou com o homem,
não é necessária a autorização. Caso não seja, a pessoa tem que fazer uma
petição ao Conselho Regional de Medicina local, que vai constituir um processo
para analisar todos os dados e definir se autoriza ou não o procedimento",
explica.
Segundo ele, o principal objetivo é evitar
vínculos comerciais. "No Brasil, pela Constituição é proibido ceder
órgãos, tecidos ou células com remuneração. Estamos prevenindo essa
prática", pontua.
O CRM avalia diversos critérios,
entre eles a comprovação de que não há parentes que possam ceder o útero para a
pessoa interessada.
"Se a mulher que ceder o útero for
casada, é necessária autorização do marido. Outro item é um parecer clínico,
comprovando que ela goza de boa saúde, e um parecer psicológico, para comprovar
que ela tem condições psicológicas de suportar uma gravidez na qual não vai
ficar com a criança."
Sob essas condições, o CRM autoriza a
gestação. "Mas é importante dizer que o Conselho não tem poder de polícia
- não vai investigar se tem dinheiro envolvido ou não, porque não é nossa
competência. Ele vai avaliar toda a documentação apresentada", acrescenta
Silva.
Ele afirma não ter conhecimento de casos de
barriga de aluguel com fins lucrativos que tenham sido relatados ao CFM.
Tampouco há dados de quantos casos já foram autorizados. "Não é uma
prática tão comum. São poucas as mulheres que necessitam de gestação de substituição."
Segundo a advogada Mariana Turra Ponte,
especialista em Direito de Família e Sucessões, caso comprovada a transação
financeira, os envolvidos podem ser condenados. O médico que participou do
procedimento também pode sofrer punição.
"A legislação brasileira tipifica a
compra ou venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano como o crime e
estabelece pena de reclusão de três a oito anos e multa, o que poderia se
aplicar", relata.
O próprio anúncio da barriga de aluguel em
redes sociais pode ser considerado ilegal, afirma o advogado criminalista Iberê
Bandeira de Melo.
"Há pelo menos quatro crimes que podem
tipificar essa conduta. Entre eles estão a publicidade enganosa e o estelionato
- caso faça a divulgação e não cumpra ou não possa cumprir por conta da
ilegalidade. Além disso, esses anúncios também podem ser classificados como
apologia ou incitação ao crime."
Em outros países
Há diversos países em que a barriga de aluguel
com fins lucrativos é permitida legalmente - inclusive para estrangeiros -,
entre eles Estados Unidos, Grécia, Ucrânia, Rússia e Albânia.
Algumas empresas comercializam a prática
nesses países, a custos que variam de US$ 65 mil a US$ 150 mil.
Gerente de uma empresa israelense que
comercializa a barriga de aluguel há dois anos e meio no Brasil, Bruna Alves
relata que os procedimentos acontecem conforme a legislação de cada país.
"Antes de a gestação ser aprovada, ela
passa por um processo de avaliação, para que ocorra tudo de modo legalizado. Em
alguns casos, como na Ucrânia, esse procedimento é feito presencialmente, e o
casal deve ir ao país. Mas nos Estados Unidos, por exemplo, pode ser feito
online", explica.
A escolha do país onde o bebê será gerado
depende do perfil do casal e das imposições da legislação local. "Por
exemplo, nos Estados Unidos é permitido que qualquer tipo de casal ou pessoa
solteira, independente da sexualidade, faça o processo. Já a Ucrânia aceita
somente heterossexuais que são casados no civil", relata Alves.
Como é a opção mais barata, a Ucrânia é a mais
procurada por brasileiros, agrega.
O material genético pode ser dos pais ou de
doadores anônimos. "Nunca utilizamos os óvulos da mulher que vai gerar o
bebê."
Segundo Alves, há países que permitem contato
entre a barriga de aluguel e os futuros pais. "Tem um casal do Rio de
Janeiro que passou o Ano Novo com a grávida, nos EUA. Mas essa questão é mais
cultural, porque na Ucrânia, por exemplo, a língua acaba impedindo o contato
entre os brasileiros e a mulher."
A empresa israelense possui atualmente 42
processos de gestação em curso - ela cobra de US$ 65 mil a US$ 110 mil por um
pacote que inclui todos os procedimentos, cujo preço varia de acordo com o país
escolhido. Segundo Alves, já foram realizados 35 nascimentos desde que a
multinacional chegou ao Brasil. Em alguns casos, a gravidez acaba não indo
adiante, mas ela diz que são permitidas novas tentativas, "até que nasça
um bebê com vida".
A advogada Mariana Turra ressalta que os pais
que utilizam a barriga de aluguel no exterior não costumam encontrar problemas
ao registrar a criança no Brasil. "Conforme a Constituição, os filhos de
brasileiros nascidos no exterior são brasileiros e deverão ser registrados em
repartição consular do país. A certidão consular de nascimento será
posteriormente registrada em cartório."
No entanto, já houve imbróglios. "O
consultado brasileiro no México, por exemplo, recusou-se a registrar o filho de
um casal homoafetivo brasileiro, gerado por barriga de aluguel, argumentando
que a lei aplicável é a mexicana, que só permite o registro da criança em nome
do pai biológico. Nesses casos, o registro em nome de ambos os pais dependerá
de medida administrativa ou judicial a ser proposta no Brasil", conta.
O sonho da maternidade
Tanto o custo da barriga de aluguel
internacional quanto os valores cobrados pelas mulheres em redes sociais
surpreenderam a vendedora Fernanda*, de 21 anos. "Tenho dificuldades para
engravidar e queria realizar esse sonho logo, mas os valores são absurdos",
declara. Ela acabou decidindo fazer tratamento para engravidar.
Isabel acredita que a barriga de aluguel acaba
sendo vista como a única alternativa para muitas pessoas. "Muitos casais
não encontram parentes que possam ajudá-los, nem pessoas que aceitem passar por
isso sem receber nada. Então, o que resta é pagar pelo procedimento no Brasil,
porque ainda é, em muitos casos, um valor menor do que aquele que pagariam em
outros países", diz.
Ela afirma estar ciente dos riscos.
"Estou tendo acompanhamento médico, mas sei que podem acontecer
complicações, na gravidez ou no parto. Mas decidi arriscar. Eu vou cuidar da
criança como se fosse minha, com todo carinho e amor. Sei que é uma situação
difícil, mas já estou preparada."
*Nomes fictícios
para proteger a identidade dos entrevistados.
Informações BBC Brasil