BBC Brasil - Desde a morte do pai, em 2013, *Mariana lutou contra a depressão e viu o quadro piorar ao mergulhar por horas a fio no Facebook. "Era como uma fuga, uma anestesia para esquecer problemas". Significava também "procrastinar tarefas da casa e os estudos". "Checava o celular o tempo inteiro. Estava viciada".
Já na vida de *Luísa, 47 anos, o smartphone entrou como alternativa para relaxar à noite, após um longo dia de trabalho. Em poucos anos, virou o centro de conflitos com as filhas e o marido. "Reclamavam que eu tinha virado um zumbi, que fingia prestar atenção em conversas quando, na verdade, estava pensando em algo que li ou esperando mais uma curtida no Instagram. Era capaz de debater temas no Facebook, mas não conversava com minhas filhas", disse Luísa à BBC Brasil.
A dependência tecnológica, que inclui o "uso abusivo" da internet, redes sociais, jogos e celulares, não é dimensionada no Brasil, mas já chega como problema a especialistas.
"Não existe nenhum órgão
dizendo que há uma preocupação nacional sobre isso, mas diferentes segmentos
observam que a tecnologia de forma excessiva começa a criar problemas
recorrentes. Há aumento de queixas de pacientes nos hospitais universitários,
nas clínicas de psicologia, de psiquiatria e em escolas", diz o PHD em
psicologia e coordenador do Grupo de Dependência Tecnológica do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP),
Cristiano Nabuco de Abreu. Destaque para o
Brasil
O Brasil tem 120 milhões de usuários de internet, o
quarto maior volume do mundo, atrás de Estados Unidos, Índia e China, mostra
relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD). Em 2016, o país foi considerado o segundo que mais usa o WhatsApp, em
um levantamento do Mobile Ecosystem Forum (MEF). O primeiro lugar ficou com a
África do Sul.
Embora não haja indicadores de quantos, em meio a
esse batalhão, são considerados dependentes, estudos dão pistas sobre os
riscos.
Uma pesquisa que a consultoria Deloitte divulgou em
outubro sobre o uso de celular no dia a dia do brasileiro - com 2 mil
entrevistados - mostra, por exemplo, que dois em cada três pais dizem acreditar
que seus filhos usam demasiadamente o smartphone. Mais da metade dos que estão
em um relacionamento veem excessos por parte dos parceiros e 33% admitem ficar
online de madrugada para ver mídias sociais.
"Temos, comparativamente a outros países, uma
quantidade de tempo de uso da tecnologia bastante expressiva e
aumentando", alerta Nabuco, também autor do livro Internet addiction in Children and Adolescents (em
tradução livre: O vício em internet entre crianças e adolescentes).
"Detox digital"
A preocupação vai além, no entanto, do tempo gasto.
Se concentra, principalmente, na relação do usuário com esse tipo de
ferramenta, diz Eduardo Guedes, pesquisador e membro do Instituto Delete -
primeiro núcleo do Brasil especializado em "desintoxicação digital"
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Essa relação, segundo ele, pode ser dividida em uso
consciente, quando o virtual não atrapalha a vida real; uso abusivo, quando
atividades online são priorizadas em detrimento das offline; e uso abusivo
dependente, quando o virtual atrapalha o real e há perda de controle.
O Instituto pesquisa o impacto das tecnologias
desde 2008 e já ofereceu atendimento gratuito a cerca de 500 pessoas, nem todas
com dependência diagnosticada.
Frases como "desliga o computador e vai
dormir", "sai do Face e vai trabalhar", "fecha o WhatsApp e
come o jantar" e "larga o celular para não bater o carro" são
usadas para chamar a atenção no site que divulga os serviços.
Narcisismo?
A sensação de prazer despertada nos usuários é uma
das possíveis explicações para a dependência. "Falar de si gera um prazer
equivalente a se alimentar, ganhar dinheiro ou fazer sexo. E em 90% do tempo as
pessoas estão falando de si nas redes sociais, com feedback instantâneo",
complementa Guedes. "Em uma conversa normal, em 30% do tempo normalmente
se fala sobre si".
Os dados são de uma pesquisa da Universidade de
Harvard segundo a qual esse comportamento gera um mecanismo de recompensa no
cérebro, graças à liberação de dopamina, além de endorfina, ocitocina e
serotonina, hormônios ligados ao prazer.
Mas esse prazer é temporário, observa Guedes.
"E vira problema quando passa a ser a fonte exclusiva de prazer, quando a
pessoa passa a viver para postar a foto e deixa de aproveitar o momento".
Gianna Testa, integrante da Associação Brasileira
de Psiquiatria (ABP), explica que o "sistema de recompensa" do
usuário é muito afetado por estímulos - ou pela ausência deles - criados pelo
reconhecimento virtual nas redes sociais, como medida de aceitação e sucesso.
O efeito seria comparável ao da dependência de
substâncias químicas no sistema nervoso central.
"Hoje é muito claro em adolescentes, por
exemplo, o quanto a autoestima depende do número de curtidas, do sucesso que
eles têm nas redes sociais", observa a especialista, também sócia da
ASEAT, uma assessoria de segurança e educação em alta tecnologia, de Brasília.
Como medir o vício?
Segundo Guedes, um conjunto de cinco critérios são
observados para avaliar se o uso da tecnologia deixou de ser saudável. O
primeiro deles mede quão importante o celular se tornou para trazer a sensação
de "refúgio de prazer ou segurança". Quanto maior a importância da
ferramenta, mais grave a condição do usuário.
"Uma pessoa que terminou um casamento, que
está com baixa autoestima, por exemplo, muitas vezes posta uma foto e isso
ajuda a melhorar. É um gatilho positivo. Mas, se ela só trabalha a autoestima
por meio da rede, isso pode gerar isolamento, desprezo pelas relações na vida
real e até depressão", exemplifica. Em tímidos, o uso abusivo pode levar
pode levar à fobia social.
Outro termômetro é a relevância da tecnologia no
dia a dia. Ir ao banheiro ou para a cama, por exemplo, e levar o celular junto
pode parecer inofensivo, mas, em alguns casos, indica distúrbio.
Outros dois indicadores na avaliação do vício são se a pessoa tolera eventos ou ambientes em que terá de ficar desconectada e se, em caso de "abstinência" no uso do celular, a experiência se torna insuportável, com efeitos físicos e psicológicos sobre o indivíduo. Pacientes com o distúrbio relatam temor de ficarem distantes das redes e mau humor, mãos tremendo, ansiedade, agressividade e tristeza quando a falta da tecnologia se concretiza.
"Há também quem use tanto o celular que, quando está sem, ele precisa ter algo nas mãos, para ficar mexendo", diz Guedes. Segundo ele, o efeito é semelhante ao vivido por ex-fumantes, que sentem a necessidade de movimentar uma caneta entre os dedos para simular os gestos que se acostumaram a fazer quando fumavam.
O quinto critério mede o quanto a dependência causa conflitos na vida real. É o caso, por exemplo, de filhos que reclamam a atenção dos pais dividida com a internet até que eles próprios começam a encontrar nas telas refúgio, gerando, em consequência, novos conflitos no ambiente familiar.
É algo que Luísa viveu e vive.
"Minhas filhas já não reclamam tanto de mim. Agora, eu é que reclamo delas. Mas isso quando não estamos todos mergulhados no celular, eu, meu marido e minhas duas filhas, cada um no seu mundo. Essa cena é comum na nossa casa, em restaurantes... Às vezes tento botar ordem na casa, pegar os celulares, mas não dura muito. Não tem atrapalhado estudos, carreiras, mas, sem dúvida, nossa vida familiar. Eu, por exemplo, frequentemente, deixo o celular embaixo do travesseiro e volto a ele assim que meu marido dorme. Sinto falta de ar, um certo nó na garganta quando estou longe do meu aparelho", conta.
Jogos online
Não são só os dependentes de celular que estão
sujeitos a esses sintomas. "Muito estresse, falta de concentração e uma
ansiedade terrível" pegavam em cheio o estudante Antônio*, de 25 anos,
quando tentava se livrar sozinho da vontade descontrolada de jogar.
O jogo virou parte da sua vida quando tinha 4 anos
de idade. Movido por um espírito de competitividade "muito grande",
acabava fisgado por computador, celular, videogame e o que mais permitisse
entrar na disputa. Ficou dependente.
"Não almoçava, não estudava e preferia ficar
em casa", diz. Para Antônio, o problema ficou evidente apenas quando
pessoas próximas passaram a observar que "a convivência estava
difícil" e o assunto virou "motivo de estresse". E também de
separação. "Eu jogava escondido da minha esposa, tinha dificuldade de
conversar e nosso relacionamento acabou terminando". O casal chegou a
fazer terapia e reatou. Há um ano, teve o primeiro filho. Ele está na terceira
tentativa de parar.
"80% dos indivíduos que são dependentes de
videogame, de internet, apresentam depressão", diz Nabuco.
Segundo o especialista, um grupo de estudiosos
defende que a dependência tecnológica seria um sintoma secundário em um
indivíduo que já tem depressão, transtorno bipolar de humor e fobia social.
Outros acadêmicos argumentam que embora haja a
coexistência de outro transtorno psiquiátrico, estamos lidando, certamente, com
uma nova "classificação diagnóstica". Seria possível, portanto, que a
tecnologia cause e não apenas agrave um problema.
Jovens e crianças são mais vulneráveis, diz Cristiano Nabuco de Abreu, porque só atingem a maturação total do cérebro a partir dos 21 anos e, com isso, demoram mais a desenvolver funções como o "freio comportamental" - por meio do qual seria possível evitar situações de risco ou atos por impulso.
Uma das preocupações dos especialistas é o acesso precoce aos gadgets. "Muitos pais entregam o celular ou o tablet ao filho, usam os dispositivos como babá eletrônica, e acham bonito. Mas quanto mais precoce esse contato, mais chances de atraso no desenvolvimento da criança".
O caso mais chocante que Nabuco atendeu foi o de uma mãe descrevendo que o filho não almoçava e não dormia, por exemplo, sem estar com o celular. "O problema maior era quando eles iam ao shopping, o menino largava a mão dela e corria para balconistas nas lojas para pedir colo e então acessar o teclado dos computadores que ali estavam. Sabe quantos anos ele tinha? 2 anos e 4 meses".
A dependência mais comum entre os meninos é o uso de jogos eletrônicos. Nas meninas, principalmente adolescentes, a dependência de redes sociais é mais comum.
São Paulo e Rio oferecem tratamento
gratuito
Em São Paulo e no Rio de Janeiro há atendimento
gratuito para a população, no Hospital das Clínicas da USP e no Instituto
Delete.
"O grande objetivo não é fazer com que as
pessoas se livrem da tecnologia. O que a gente quer é que elas retomem o
controle desse uso", diz Nabuco, do Hospital das Clínicas.
Oito em cada dez pacientes, segundo ele, chegam ao
final do tratamento sem sintomas. Os demais, muitas vezes reiniciam a terapia.
O tratamento envolve reuniões em grupo para
conversas com psicólogos e psiquiatras e, se for preciso, o uso de medicamentos
para combater transtornos associados à dependência.
No Instituto Delete, o método usado envolve desde a
identificação das raízes do problema até a adoção de técnicas de respiração e
"ressensibilização". "O foco não é proibir o uso, mas criar
estratégias para a pessoa ter prazer em atividades na vida real",
complementa Eduardo Guedes.
A busca por mais equilíbrio envolve tratamento e também uma consciência maior do problema. Mariana* iniciou terapia para "desintoxicar". Faz sessões em grupo por uma hora e meia, uma vez por semana. "Considero que percorri uns 40% desse caminho, em um processo lento e com recaídas", calcula.
Um pesquisador do tema disse à BBC Brasil ter sido procurado por operadoras de telefonia celular que estariam preocupadas com o uso abusivo dos aparelhos e em busca de possíveis soluções.
Procuradas pela BBC Brasil, Claro, Oi, Vivo e TIM - as principais operadoras de telefonia no país - não confirmaram se planejam medidas como enviar mensagens a clientes para alertar sobre possíveis riscos do uso abusivo, assim como ocorre na indústria de cigarros e bebidas. Por meio do SindiTelebrasil, sindicato que representa o setor, afirmaram, no entanto, que "sempre defenderam o uso consciente desses serviços, respeitando a liberdade de escolha, as necessidades, convicções, crenças e hábitos de cada indivíduo".
O Ministério da Saúde informou que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamento integral e gratuito para todos os tipos de transtorno mental, incluindo depressão e vícios em álcool e outras drogas, mas que não tem dados específicos sobre os problemas ligados à tecnologia.
*Os nomes reais dos entrevistados foi trocado para proteger sua privacidade.