Adulterar um produto para obter ganhos comerciais
não é particularidade da indústria da carne no Brasil, como foi exposto pela operação Carne
Fraca, da Polícia Federal. Estudos e ações pontuais mostram que
o crime é praticado para maquiar outros alimentos que chegam à mesa dos
brasileiros.
Quase
ao mesmo tempo em que policiais federais levavam mais de 30 pessoas à prisão
por receber propinas ou adicionar substâncias maléficas à carne, uma ação no
Rio Grande do Sul que não teve a mesma repercussão tratava de um caso
semelhante. Conheça esse e outros problemas com produtos básicos do dia a dia.
Laticínios
vencidos
Na
última semana, uma operação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS)
com outras entidades cumpriu cinco mandados de prisão e quatro de busca e
apreensão contra produtores de laticínios que adulteravam lotes já impróprios
para o consumo.
Qual
é o impacto do escândalo das carnes na economia brasileira?
Segundo
as investigações, empresas locais vinham adicionando substâncias para diminuir
a acidez e eliminar micro-organismos de laticínios vencidos. E, no creme de
leite, acrescentavam água para amolecer o produto envelhecido e ressecado.
Foi
a 12ª fase das operações "Leite Compen$ado", que começaram em 2013. E
hoje a operação integra um programa maior de segurança alimentar criado pela
Promotoria gaúcha, tamanho era o número de denúncias e processos judiciais de
irregularidades com alimentos.
Ao
todo, 167 pessoas - na maioria produtores e distribuidores do Rio Grande do Sul
- foram denunciadas e respondem a processos criminais em razão das ações do
Ministério Público. Dessas, 16 foram condenadas por adulteração do leite e
organização criminosa.
Indústrias
e transportadoras já assinaram nove Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com
o MP, que, além de compromissos firmados, abrangem indenizações que somam mais
de R$ 10 milhões.
Desde
então, diferentes substâncias já foram encontradas nos laticínios; entre elas,
ureia e formol. Um comunicado da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) divulgado durante operações passadas alertou sobre o potencial
cancerígeno do formol; já a ureia, em doses razoáveis, tem baixa toxicidade.
Após
escândalo, consumidores buscam carne 'sem marca' no Rio Grande do Sul
"A
maioria das adulterações ocorre para aumentar a longevidade dos produtos",
explica Caroline Vaz, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do
Consumidor do MP-RS.
Mesmo
após cinco anos de operações, Vaz diz que as denúncias continuam: "Quando
descobrimos e coibimos um novo golpe, os grupos inventam uma nova técnica para
adulterar os produtos".
Ela
alerta para os problemas de fiscalização: há situações criminosas - como a
revelada na operação da PF -, mas também defasagem por falta de fiscais.
Azeite
que é óleo
Azeites
que não são extravirgem ou que nem sequer podem ser classificados como azeite
(e, sim, óleo), já foram denunciados pela Associação Brasileira de Defesa do
Consumidor (Proteste), que testa produtos desde 2002.
Resultados
recém-divulgados mostram que de 24 marcas testadas, sete ditas extravirgem na
verdade são misturas de óleos refinados, segundo a pesquisa. São elas:
Tradição, Figueira da Foz, Torre de Quintela, Pramesa, Lisboa, além de duas que
conseguiram na Justiça não ter seus nomes divulgados. Já outra marca (Beirão)
não continha azeite extravirgem, como descrito na embalagem.
"Consumidores
estão pagando mais por um produto que não tem a qualidade que se anuncia",
critica Sonia Amaro, advogada e representante da Proteste.
Enquanto
o azeite extravirgem é benéfico para a saúde, aumentando o colesterol bom
(HDL), o óleo é prejudicial, pois eleva, por exemplo, o mau colesterol (LDL).
Até
o momento, a Natural Alimentos, responsável pela importação e envasamento da
marca Lisboa, afirmou que não foi notificada pela Proteste e que a partir desse
ano apenas comercializará azeites extravirgem importados aprovados por órgãos
controladores nos países de origem.
Já
a empresa Olivenza, da marca Torre de Quintela, disse que desconsidera a
análise da Proteste, pois fez testes próprios da qualidade do produto. Os
documentos foram encaminhados à reportagem e serão repassados à Proteste.
As
demais marcas não tinham respondido à reportagem até a publicação deste texto.
Produtos
adulterados
A
organização científica independente US Pharmacopeia monitora um banco de dados
sobre fraudes de alimentos, que serve para mostrar tendências de adulteração em
vários países. A pedido da BBC Brasil, a entidade fez um breve levantamento
sobre o Brasil.
Registros de
adulteração da carne começaram em 2015, segundo a organização. E o caso do
leite tem sido um problema persistente. Além de ureia e formol, há ainda adição
de água oxigenada.
A Anvisa diz que
pequenas quantidades de água oxigenada no leite não trazem riscos à saúde. Mas
não há evidências sobre consumo em altas doses da substância.
Numa análise com
leite de cabra na Paraíba, 40% das 160 amostras continham leite de vaca. Os
resultados de 2012 foram publicados na revista American
Dairy Science Association.
Um estudo publicado
no periódico Food Chemistry revelou que 13%
das amostras de mel no Brasil eram acrescidas de xarope de açúcar.
Outra pesquisa
publicada no Journal of Heredity identificou
fraude na substituição de espécies de peixes em Manaus.
E há ainda
relatórios sobre a adulteração do café com casca da própria planta, além de
soja e milho, que são mais baratos.
Em setembro do ano
passado, uma ação pontual do Procon-MG indicou que 30,7% de 241 marcas de café
analisadas continham impurezas acima do limite.
Controle
do café
Segundo
o engenheiro agrícola José Braz Matiello, pesquisador da Fundação Procafé, as
adulterações do café afetam o gosto da bebida, mas não causam males à saúde.
"O
café é torrado a temperaturas próximas a 260 graus, eliminando quaisquer
organismos eventualmente maléficos, diferentemente do que pode ocorrer com
outros alimentos ou bebidas consumidos in natura e
sem tratamento térmico", explicou por e-mail.
Desde
1989, a Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) faz análises anuais
com 3 mil amostras do mercado. O diretor-executivo Nathan Herszkowicz explica
que o programa começou em decorrência do alto índice de fraudes verificado à
época.
A
Abic então criou o Selo de Pureza e definiu que o limite tolerado de impurezas
é de 1% da amostra total, com penalidades que vão de advertência a denúncia ao
Ministério Público.
Nos
testes iniciais, resíduos eram encontrados em até 25% das amostras de café.
Atualmente, Herszkowicz afirma que o índice não chega a 1%.
"A
adulteração mais comum continua a ser a adição da casca do café, que é um
resíduo usado para reduzir o custo do produto", explica.
Pressões
na legislação
Normas
de vigilância definem regras e punições sobre fraudes em produtos. Mas pelo
menos dois projetos de lei querem tornar crime hediondo a adulteração de
alimentos.
O
projeto de lei do Senado 228, de 2013, está na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania desde setembro do ano passado. Já o PL 6248/2013 não tem
movimentação desde 2015.
Enquanto
isto, organizações como a Proteste pressionam por mudanças na lei visando a
proibir determinados aditivos em alimentos. Esse é o caso do amarelo
tartrazina, um corante que provoca reações alérgicas.
Ele
é encontrado em produtos consumidos por crianças, como biscoitos salgados e
doces, além de refrigerantes e sucos.
"Há
anos pressionamos pelo banimento desse corante, mas ainda seguimos brigando por
isso", contou Sonia Amaro.
O
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor lembrou que as normas brasileiras
sobre corantes são mais permissivas do que as de outros países, como os Estados
Unidos.
Esse é o caso de
corantes chamados amarelo crepúsculo, banido na Finlândia e Noruega; azul
brilhante, proibido na Alemanha, Áustria, França, Bélgica, Noruega, Suécia e
Suíça; vermelho 40, não permitido na Alemanha, Áustria, França, Bélgica,
Dinamarca, Suécia e Suíça; entre outros.
O mesmo acontece
para determinados agrotóxicos aplicados em vegetais e frutas que chegam aos
consumidores brasileiros. Há anos, uma lista de pesticidas banidos em alguns
países é comercializada no Brasil.
Exemplos são do
acefato, um dos mais vendidos no país e que pode ter efeitos no sistema
endócrino, e o herbicida paraquat, que foi proibido até na China, que costuma
ser permissivo com leis ambientais.
Mas o problema dos agrotóxicos, na verdade, é maior. A
Proteste testou ano passado 30 amostras de supermercados e feiras do Rio de
Janeiro e de São Paulo. Em 14%, os níveis de pesticidas estavam acima dos
recomendados pela Anvisa. Em 37%, havia substâncias nem sequer autorizadas.
<> Agência BBC Brasil //