Professora de Língua Portuguesa da rede pública há 29
anos, Jonê Carla Baião sempre pede aos alunos, no início do período letivo, uma
redação curta sobre a vida deles. Já leu e ouviu muita história, mas ainda se
atordoa com relatos como o que lhe foi entregue no primeiro dia de aula de 2017
por uma aluna do 9º ano:
"Eu sempre fui zoada e a última vez em que tive paz
na escola foi no Jardim (de infância); depois disso não tive um ano sequer em
que não tenham mexido comigo", escreveu a jovem, que, negra e muito magra,
era alvo constante de ofensas dos colegas, e os professores não percebiam.
Outra vez, também no primeiro dia de aula, uma aluna
vinda de São Paulo escreveu que apanhava do pai e por isso havia se mudado para
o Rio para morar com a mãe e o padrasto - que passou a abusar sexualmente dela.
Tema constante de debate na escola pública brasileira, a
violência nos colégios voltou à cena depois que Marta Avelhaneda Gonçalves, de
14 anos, foi morta por estrangulamento numa sala de aula do Rio Grande do Sul
na semana passada.
Relatos de violência, agressão e bullying expõem tanto o
sofrimento do aluno como o isolamento do professor para agir diante de casos
que ultrapassam a competência de apenas "transmitir conhecimento".
Uma proposta em tramitação no Congresso há 17 anos, o
projeto de lei 3.688, propõe a contratação de psicólogos e assistentes sociais
na rede pública como forma de oferecer atendimento aos alunos e apoio aos
professores no ambiente escolar.
Especialistas ouvidos pela BBC Brasil elogiam o mérito do
projeto, mas afirmam que é preciso pensar no conjunto da situação escolar. A
Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), por sua vez,
alerta que uma das dificuldades para que ele seja aprovado é sua viabilidade
financeira e operacional.
Na avaliação da entidade, a contratação não pode ser
feita em cada escola, mas sim em parceria com as secretarias de Saúde e
Assistência Social - mudança já prevista no projeto. Parte dos municípios
brasileiros ainda não consegue pagar o piso nacional do magistério (R$
2.298,80), e, para a Undime, ter psicólogos e assistentes sociais recebendo
valor possivelmente superior criaria conflito com os professores.
Rotina de prevenção
Uma professora da História, que concordou em dar
entrevista à BBC Brasil sob anonimato, vive numa escola municipal da Baixada
Fluminense situações semelhantes às relatadas por Jonê Carla.
"Tenho um aluno que viu o pai matar a mãe. O garoto
é hiperativo e não para quieto. Agora o pai vai sair da prisão. Como vai ser?
Tive aluna que sofria abuso sexual do padrasto, outra do pai. Tivemos que
chamar o Conselho Tutelar. Alunos e professores precisam de ajuda para lidar
com isso", avalia.
Em casos de abuso sexual ou violência doméstica, o
professor é orientado a procurar imediatamente a direção da escola para que a
denúncia seja apurada, recorrendo a órgãos como polícia e Conselho Tutelar.
Docente das redes municipal e estadual do Rio, Jonê Carla
relembra uma ocorrência de abuso sexual encaminhada ao Conselho Tutelar.
Segundo ela, a preocupação é que o professor não guarde o caso apenas para si e
procure apoio para o aluno.
Especialista no tema da gestão escolar e doutora em
Administração Pública, a pesquisadora Gabriela Moriconi, da Fundação Carlos
Chagas, avalia que o suporte psicossocial proposto no projeto de lei ajudaria
alunos e professores a não apenas reagir a "problemas" de um ou outro
estudante, mas criar uma rotina de ação preventiva capaz de agir no conjunto
das escolas.
Moriconi acompanhou projetos educacionais no Canadá e no
Reino Unido e observou fatores que podem influir no clima da escola. Na
experiência canadense, por exemplo, equipes multidisciplinares não ficavam
fixas nos colégios, mas no sistema educacional, atendendo a várias unidades.
"É um suporte importante para um professor que já
enfrenta questões variadas, como o salário baixo, a adequação da dificuldade da
aula para turmas pouco homogêneas, ou turmas grandes, ou a definição de regras
de convivência", afirma a pesquisadora.
"Psicólogos e assistentes sociais não trazem solução
para todos os problemas, mas são uma forma de realizar um trabalho mais
constante na escola e compreender o aluno em seu contexto. É preciso entender
como esses alunos se sentem, se respeitados ou ameaçados", acrescenta.
'Bullying exige plateia'
A indisciplina também preocupa e atrapalha professores
brasileiros. Pesquisa divulgada pela OCDE (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico) em janeiro de 2015 mostrava que, entre 33 países
comparados na Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (PISA) de
2013, o Brasil foi o lugar em que os professores mais se queixaram de
estudantes indisciplinados.
Pelo menos dois em cada três professores brasileiros
disseram ter problemas com o assunto em sala de aula. Entre os países pesquisados,
a média era de 31% - pouco menos de um terço.
Entre o aluno ideal e a escola real, um dos caminhos é
tentar entender as diferenças, avalia a pedagoga Cláudia Barreiros, mestre e
doutora em Educação e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Educação Básica do Cap-Uerj, o Colégio de Aplicação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
"O professor tem que partir do princípio de que os
alunos são diferentes. Não adianta chegar à escola e dizer: 'ah, não era o que
eu esperava'. Temos de lidar com estes alunos e suas realidades", afirma.
O Cap-Uerj implementou em 2011 um programa de combate ao
bullying, preocupação relatada por professores ouvidos pela BBC Brasil.
Pesquisadora do tema, Barreiros destaca que o bullying
pressupõe um praticante, um alvo e também uma plateia - as pessoas que dão ao
praticante a "visibilidade" almejada. "Se é uma piada, todos
estão se divertindo, é uma brincadeira. Se alguém começa a sofrer com a piada,
já não é brincadeira", alerta.
Cláudia relembra o caso de uma aluna negra, gordinha, que
sofria bullying contínuo. Alguns professores cobravam que a família ajudasse,
estimulando um regime. "Eu me perguntava, mas e a cor, querem mudar
também? Não vamos culpar a vítima. O bullying não resulta da diferença, resulta
do preconceito", analisa.
Da experiência do magistério, ela guarda a lição de uma
turma na qual meninos de 6, 7 anos perseguiam meninas chamando-as de
"macacas" e "baleias". O melhor resultado obtido por uma
professora contra o problema foi dizer claramente às crianças que racismo é
crime punido com prisão.
"Temos de trabalhar no sentido educativo, claro, mas
o professor não pode ser conivente ou leniente. É preciso deixar explícito que
o preconceito não será tolerado", afirma.
Do mesmo modo, em casos de agressão, abuso ou violência
doméstica, a orientação é levar imediatamente a denúncia às instâncias
responsáveis.
Efeitos no professor
Diante da violência, da indisciplina e da rotina
estressante de sala de aula, o professor também sofre as consequências.
O psicanalista Leandro dos Santos atendeu durante dez
anos professores e diretores de escolas públicas do ABC paulista no ambulatório
de uma faculdade particular em que dava aulas. As queixas mais comuns eram
depressão, estresse e esgotamento nervoso.
"Até hoje atendo professores no consultório e
observo um grande sentimento de impotência diante da rotina escolar",
afirma Santos, mestre em Psicologia Escolar e doutor em Psicologia Clínica pela
USP.
"Às vezes me sinto só diante de tanto sofrimento do
aluno. Queria poder fazer mais", diz a professora de História da Baixada
Fluminense. Ela conta que já trabalhou em uma escola pública em que havia um
psicólogo e se sentia mais segura para abordar alunos com hiperatividade ou deficit
cognitivo.
"O professor sozinho não dá conta. Por mais que o
aluno se identifique com um ou outro professor, não fomos treinados para essa
ajuda tão especializada", analisa Jonê Carla, a professora que pede aos
alunos redações sobre suas vidas.
Na tentativa de melhorar a autoestima dos estudantes,
Jonê Carla discute gênero, identidade, racismo, descobre histórias, escreve
sobre o que aprende em sala de aula. E guarda em seu baú de professora relatos
pungentes, como um poema escrito por um ex-aluno de uma escola em Guadalupe, na
zona norte do Rio:
Mataram meu colega e eu não digo nada
Me chamam de zumbi e eu não digo nada
Me ameaçam e eu não digo nada
Estão em guerra e eu não digo nada
A seca está matando e eu não digo nada
Professor me dá os esporros e eu não digo nada
Morre gente e eu não digo nada
Ficam me criticando e eu não digo nada
O Brasil perde a Copa e eu não digo nada
Picham a escola e eu não digo nada
Pois agora chega, eu vou dizer tudo. <> Agência BBC Brasil //