Neste momento
particularmente conturbado da história do Brasil, quando o país lava as roupas
em público, é uma boa hora para lembrar que às vezes conspirações são mais que
teorias e que o Estado tentou varrer para debaixo do tapete alguns momentos sórdidos
da história da nação. Entre elas, um programa nuclear clandestino, o
assassinato de um ex-presidente no regime militar (ou seriam dois?) e campos de
concentração.
O trabalho das
Comissões da Verdade, a liberação de documentos classificados e até o Wikileaks
vêm jogando novas luzes sobre aquilo que imaginávamos saber. Para pesquisadores
e historiadores, porém, muita coisa ainda está oculta.
A sonegação de informações
oficiais vem de longe. Começou já na "certidão de nascimento" do país
- a carta de Pero Vaz de Caminha (ao que parece, herdamos o hábito dos
portugueses). "O rei de Portugal, dom Manuel 1º, demorou um ano para
comunicar a descoberta oficial do Brasil ao sogro, o rei da Espanha",
conta o jornalista e escritor Laurentino Gomes "E a carta de
Caminha, que dava detalhes do evento, ficou escondida na Torre do Tombo, em
Lisboa, até 1773."
1 • A bomba atômica dos militares
Nossas Forças Armadas tentaram
desenvolver armas nucleares, talvez com uma mãozinha de Saddam Hussein
Em 1990, o presidente Fernando Collor jogou uma simbólica
pá de cal num poço de 320 m para testes nucleares na serra do Cachimbo, no
Pará. "A suspeita é que ele teria sido construído com recursos do Iraque
de Saddam Hussein para abrigar testes do programa iraquiano. E os dados seriam
cedidos ao Brasil", diz o jornalista Roberto Godoy, especialista em
assuntos de defesa. O poço é só um pedaço de uma série de operações
clandestinas, iniciadas no governo Ernesto Geisel, para garantir ao Brasil a
tecnologia necessária para fabricar a bomba atômica (e ogivas para mísseis
nucleares).
Na prática, sobretudo a partir do início da década seguinte,
o governo manteve dois programas nucleares: o oficial, com fins pacíficos, e o
paralelo e sigiloso. Sempre houve facções do regime que defendiam que a única
maneira de o Brasil ser respeitado no mundo seria ter a bomba. O Iraque virou
uma peça curiosa nesse enredo, que sobreviveu ao fim da ditadura. Entre 1979 e
1990, o Brasil exportou toneladas de urânio (a matéria-prima do combustível das
bombas) para Saddam. O roteiro nebuloso inclui espionagem e suborno de técnicos
e autoridades estrangeiras, entre outras manobras, que até alimentaram uma CPI
sobre o tema. A Constituição de 1988 havia proibido o país de usar a tecnologia
nuclear para fins bélicos, mas o "esforço paralelo" dos militares
sobreviveu até 1990, segundo confirmou mais tarde José Carlos Santana,
ex-presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear no governo Collor. Quando
o CNEM do B deixou de funcionar, o país estaria prestes a fazer o primeiro
teste.
"Em dezembro de 1996, a PF prendeu um alemão que
vendera conhecimentos ao Brasil depois de tentativas frustradas junto ao
Iraque", diz Tânia Malheiros, autora de Brasil: A Bomba Oculta - O
Programa Nuclear Brasileiro. Para ela, é só uma amostra de que "há muita
coisa a ser explicada". Hoje o Brasil domina o ciclo de produção do
combustível nuclear e está construindo seu primeiro submarino com propulsão
atômica. A revelação de detalhes estratégicos sobre essa tecnologia e os
bastidores espúrios do programa nuclear estariam no topo das preocupações de
quem, no governo Dilma, insiste em manter o sigilo eterno.
2 • Ditadura pode ter matado JK, Jango e
Lacerda
Com a colaboração
de outras ditaduras, militares teriam dado cabo a ex-presidentes e um
ex-governador de oposição
Em dezembro de 2013, a Comissão da Verdade da Câmara
Municipal de São Paulo publicou um relatório que
afirma com todas as letras: o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi
assassinado pela ditadura militar. Até então, a versão oficial era a de que ele
tinha morrido em um acidente de carro na Via Dutra, aos 73 anos, em 22 de
agosto de 1976.
Entre os 90 indícios levantados pela comissão está o
depoimento do perito Antônio Carlos de Minas, que garante ter visto um buraco
de bala no crânio exumado do motorista do ex-presidente. Josias Nunes Oliveira,
condutor do ônibus que teria fechado o automóvel, diz ter recusado a oferta de
"uma mala de dinheiro" para assumir a culpa no desastre. Em 1996, com
o país havia anos livre do regime militar, uma investigação tentou esclarecer
as circunstâncias da morte de JK e, na ocasião, o mesmo perito teria tido
acesso ao crânio do motorista e concordado com a versão da ditadura. Por quê?
Há perguntas não respondidas a respeito das mortes de
Carlos Lacerda e João Goulart, que com JK formaram a Frente Ampla para o
combate à ditadura. Seria apenas coincidência que os três tenham morrido em
menos de um ano? Jango, o presidente deposto em 1964, de ataque cardíaco em
dezembro de 1976, na Argentina. Lacerda, ex-governador do estado da Guanabara,
que apoiou a ditadura para depois mudar de lado, de uma infecção cardíaca em
maio de 1977.
A Comissão Nacional da Verdade exumou o corpo de João
Goulart no mesmo ano. A suspeita é que ele tivesse sido envenenado na
Argentina, vítima da Operação Condor, uma ação de extermínio de opositores
orquestrada entre as ditaduras do Cone Sul. No final de 2014, os resultados
saíram e, foram inconclusivos. O ex-agente uruguaio Mário Neira Barreiro diz
que a ordem para matar Jango veio da presidência brasileira. Ele cumpre pena no
Rio Grande do Sul por roubo e posse ilegal de arma.
Em 2014, a mesma Comissão Nacional da Verdade rejeitou a versão da Comissão da Verdade de São Paulo e disse que a versão oficial do tempo da ditadura está
correta e JK não foi assassinado. Os mistérios se acumulam...
3 • Brasil, o vilão da Guerra do
Paraguai
País promoveu uma
carnificina graiuita
As versões e lendas que passaram a cercar a Guerra do
Paraguai, 141 anos depois do fim do maior conflito armado da América do Sul,
são tenebrosas: guerra bacteriológica, extermínio de crianças, degola de
prisioneiros e o incêndio criminoso de um hospital cheio de feridos. Por mais
de um século, o episódio recebeu tratamento triunfal. A historiografia nacional
destacava as batalhas vencidas pelos brasileiros e exaltou personagens e feitos
heroicos. Até que, na década de 1970, os chamados "revisionistas" -
como Julio
Chiavenato, autor de
Genocídio Americano - A Guerra do Paraguai - jogaram acusações como as do
início deste texto no ventilador. Para eles, o governo brasileiro tentou (e
ainda tenta) esconder seu verdadeiro papel no conflito: ode vilão.
Chiavenato diz que o duque de Caxias, o comandante
brasileiro, teria jogado cadáveres no rio Paraná para contaminar a água.
"O general Mitre (Bartolomeu Mitre, presidente argentino) está de acordo
comigo que os cadáveres de coléricos devem ser jogados nas águas do rio Paraná
para levar o contágio às populações ribeirinhas", teria escrito Caxias ao
imperador dom Pedro 2º. Na prática, era um ataque bacteriológico, usando
cadáveres de veículo para micro-organismos letais.
Não que essa versão tenha virado unanimidade. "O
documento, de autoria desconhecida e evidentemente forjado, não tem valor
histórico algum. Aliás, a versão também não tem lógica, já que o Paraná deságua
no rio Paraguai e o rio não sobe - assim, não seria possível contaminar
ninguém", contesta o historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita Guerra.
Outra "bomba" que surgiu na onda revisionista
foi o extermínio de crianças nas batalhas de Peribebuí e Acosta Ñu, em 1869. Na
primeira, cerca de 21 mil aliados brasileiros e argentinos enfrentaram 1,8 mil paraguaios,
a maior parte crianças disfarçadas com barbas postiças para que o inimigo não
percebesse a fragilidade do exército. Os poucos adultos usaram tijolos, cacos
de vidro e pedras contra canhões. Na batalha de Acosta Ñu (Campo Grande, para
os brasileiros), a tática de disfarçar garotos de adultos também acabou em
massacre. Placar de mortes: 2 mil paraguaios x 26 brasileiros.
Diferentemente do que o senso comum imagina, o Brasil
estimulou a sobrevivência do Paraguai como nação independente - ao contrário da
Argentina, que gostaria de absorvê-lo. Depois que acabou a guerra, por muito
pouco Brasil e Argentina, aliados no conflito, não começaram outra. Isso só não
aconteceu porque ambos estavam esgotados. Documentos quepoderiam mostrar com
mais clareza o papel do Brasil no campo de batalhas estariam escondidos no
Itamaraty, com acesso proibido aos pesquisadores.
4 • Rui Barbosa "apagou" a
escravidão
Grande queima de arquivo foi ordenada
pela Águia de Haia
"O Congresso Nacional felicita o Governo Provisório
por ter ordenado a eliminação nos arquivos nacionais dos vestígios da escravatura
no Brasil." Com essa mensagem, era aprovada em dezembro de 1890 a decisão
do ministro da fazenda, Rui Barbosa, de queimar todos os livros de registros
dos cartórios municipais com dados relativos à compra, venda e transferência de
escravos no país. A papelada foi destruída em 13 de maio de 1891.
A hipótese mais aceita é a de que a intenção era evitar
que o Tesouro Nacional fosse obrigado a indenizar os donos de escravos afetados
pela Lei Áurea, de 1888. "Os senhores de engenho, fazendeiros e grandes
proprietários pensavam em se beneficiar com a República e com as
indenizações", acredita Humberto Fernandes Machado, da Universidade
Federal Fluminense. Para ele, uma república recém-estabelecida por um golpe
militar, com o apoio de antigos senhores de escravos, poderia ter tomado rumo
diferente (pior) se os documentos existissem. "A queima anulou essa
possibilidade."
Mas essa moeda tem outro lado. "Se tivessem o
registro de sua data de compra, os negros também poderiam reivindicar uma
recompensa por terem sido escravizados ilegalmente", acredita Marisa Saenz
Leme, da Unesp de Franca. Ela apoia seu argumento em uma lei promulgada em 7 de
novembro de 1831 que proibia o tráfico negreiro. A ordem não foi cumprida - nos
15 anos seguintes, pelo menos 300 mil africanos foram trazidos. Em tese, eles
poderiam ser beneficiados por indenizações. Evidência disso é que, em 2006, foi
encontrada uma carta da princesa Isabel ao visconde de Santa Vitória, sócio do
Banco Mauá. Nela estava descrita a intenção de indenizar os ex-escravos com
terras e instrumentos de trabalho.
5 • Roubamos o Acre
De coordenadas geográficas de mentira à
"troca por um cavalo": as tramas e falcatruas na compra do estado
Nos primeiros anos da República, entrou em cena um
capítulo controverso da demarcação de nossas fronteiras: a anexação do Acre. Na
região, viviam diferentes grupos étnicos (nem brasileiros nem bolivianos).
Pouco importava, para eles, quais eram os limites de Brasil, Bolívia e Peru.
Para o governo brasileiro, a região era território boliviano.
"Euclides da Cunha foi feliz quando afirmou que,
durante anos, o rio Purus foi cartografado fantasiosamente por geógrafos e
burocratas que nunca puseram os pés na região. As absurdas coordenadas e linhas
demarcatórias que daí surgiram deram margem para incompreensões sobre o que
passaria a se chamar Questão do Acre", diz o historiador Gerson
Albuquerque, da Universidade Federal do Acre. Para ele, tratados como o de
Ayacucho (1867), que embasaram a demarcação das fronteiras entre Brasil e
Bolívia, foram assinados às escuras - pautados por coordenadas fantasiosas.
Esse abandono mudou quando se percebeu que os pneus da nascente indústria
automobilística precisavam do látex acriano como matéria-prima. Seringueiros do
Norte e Nordeste invadiram a região sem que os vizinhos notassem (ou
reclamassem).
Quase 20 anos depois, Bolívia e Peru também cresceram os
olhos para a borracha. Os bolivianos tentaram então arrendar o território para
um consórcio de empresas de capital inglês e americano. E instalaram uma base
militar na região para cobrar impostos sobre a circulação de mercadorias. Os
barões da borracha, com o bolso ferido, se mobilizaram. "A Bolívia era
pequena e muito mais frágil militarmente que o Brasil, a grande nação expansionista
na região. Por isso, teve de ceder ao ‘acordo’ (o Tratado de Petrópolis, de
1903, que incorporou o Acre ao território brasileiro)", diz Albuquerque.
Em 2006, o presidente da Bolívia, Evo Morales, reclamou que opaís "deu o
Acre ao Brasil em troca de um cavalo". Na verdade, foi por 2 milhões de
libras, ou 400 milhões de reais hoje. Pouco para uma área 3 vezes maior que a
Suíça (152 mil km2). Mas o Brasil cedeu terras do Mato Grosso e se comprometeu
a construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré para transportar produtos
bolivianos até o oceano Atlântico. A abertura da documentação ainda sob sigilo,
para Albuquerque, poderá lançar outras luzes sobre versões românticas da
história. "Temos o direito de conhecer as tramas e as sujeiras que
marcaram a constituição das fronteiras." Um diplomata brasileiro, sob
anonimato, afirma que até pessoas de outros países reclamam dos segredos
brasileiros. "Existe muita suspeita, e a recente defesa do sigilo eterno
fomenta isso."
6 • Vargas criou campos de concentração
Ditador seguiu a
cartilha nazista inclusive depois de romper com Hitler: alemães, italianos e
japoneses sofreram em 31 campos espalhados pelo país.
Qual dos lados envolvidos na 2ª Guerra - os Aliados ou o
Eixo - era mais caro ao presidente Getúlio Vargas? Na década de 1930, os
alemães eram o segundo maior mercado consumidor de produtos brasileiros.
Policiais e militares brasileiros treinaram com a Gestapo, e o governo entregou
aos nazistas judeus alemães que moravam no Brasil. Em abril de 1942, uma
passeata reuniu cerca de 2 mil nazistas uniformizados no centro de
Florianópolis.
Pesa ainda a favor de seu possível pendor para o lado dos
alemães e italianos a revelação, no fim dos anos 1980, do conteúdo das
Circulares Secretas. Nelas, Vargas orientava diplomatas brasileiros na Europa a
não conceder vistos de entrada para o Brasil a judeus e outras minorias
"indesejadas". Segundo a historiadora Priscila Perazzo, a professora
e pesquisadora Tucci Carneiro conseguiu burlar a vigilância nos arquivos do
Itamaraty e fez cópias das Circulares, consideradas documentos secretos e,
portanto, proibidas aos olhos dos cidadãos comuns. No fim dos anos 1990, novos
documentos vieram a público.
"Vargas era um homem dos tempos do fascismo. Na
década de 1930, essa era a ideologia dominante em muitos lugares. O Brasil não
estava fora disso", diz Priscila. Ela avalia que o país acabou entrando na
guerra ao lado dos aliados graças a um alinhamento comercial, político,
cultural e diplomático com os EUA que vinha de anos - não foi um ato
intempestivo para vingar o bombardeio de navios na costa brasileira por
submarinos alemães. Eles queriam nos dar um susto para frear essa aproximação
com os americanos. Nem foi uma retribuição interesseira pelo (muito) dinheiro
americano investido na Companhia Siderúrgica Nacional - a versão mais popular
para a decisão de Getúlio Vargas.
Em 1942, Getúlio rompeu com Hitler. Mas não com as
práticas fascistas. A diferença é que agora elas se voltavam contra os alemães.
É cada vez maior o volume de descobertas sobre os campos de concentração
brasileiros e sobre os maus-tratos que civis japoneses, italianos e
principalmente alemães sofreram no Brasil. Se não eram locais de tortura
sistemática e extermínio em massa, como na Alemanha, também estavam longe de
ser colônias de férias.
Até o fim da guerra, o Ministério da Justiça manteve 31
campos de concentração em lugares como Pindamonhangaba e Guaratinguetá (SP),
Joinville (SC) e Rio de Janeiro. Para lá, eram mandados os "inimigos"
que chegassem ao país durante o conflito ou que fossem suspeitos de espionagem.
Não podiam ler livros em seu
idioma, eram submetidos a trabalhos forçados na lavoura e muitas vezes
dependiam de ajuda externa para não passar fome. Alguns, acusados de serem
nazistas, só podiam receber visitas no dia de Natal - seus descendentes
suspeitam que tenham sido torturados. Cerca de 5 mil pessoas foram confinadas
nesses lugares. Mesmo assim, os nazistas conseguiram montar uma importante rede
de espionagem no Brasil - o que era considerado um forte indício de que, se
conquistasse a Europa, Hitler voltaria seus olhos para cá. <> Uol //