O descaso se encontra no município de Salgueiro, no
sertão de Pernambuco. É ali, não muito longe do centro da cidade, que duas
obras bilionárias, anunciadas como promessas de um desenvolvimento que ainda
não veio, se entrelaçam. Os trilhos da ferrovia Transnordestina passam por
sobre o canal da transposição do Rio São Francisco. Uma obra para integrar e
fortalecer a economia do Nordeste. A outra, para vencer a seca. As duas orçadas
em mais de R$ 20 bilhões. Ambas paradas.
No caso da Transnordestina, o problema é mais
grave. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), o contrato atual da
obra previa que a ferrovia deveria ter sido concluída no fim de janeiro. Em uma
década, no entanto, apenas 600 quilômetros de trilhos foram colocados de 1.753
da extensão total.
No restante do trajeto, que atravessa 35
municípios em Pernambuco, 28 no Ceará e 18 no Piauí, não há nenhum sinal de
trabalho em andamento. Foi o que atestou a reportagem do G1, após um giro de
mais de 3 mil quilômetros pelos três estados que durou 10 dias.
O ponto de partida é a cidade de Salgueiro, cuja
posição estratégica, equidistante de várias capitais do Nordeste, a transformou
em epicentro da Transnordestina. É por isso que o município abriga o canteiro
industrial da obra. O terreno de 46 hectares tem fábrica de dormentes,
pedreira, central de britagem, estaleiro de solda e oficina de manutenção. Tudo
parado. Um cenário que persiste pelo menos desde abril do último ano.
Uma imagem aérea do canteiro industrial dá a
dimensão do abandono e revela o trecho exato em que Transnordestina e
transposição se cruzam. De um lado, correm os trilhos com cinco locomotivas
estacionadas. Um espantalho faz as vezes de segurança no posto avançado de
vigilância.
Em paralelo, corre o canal que promete levar
água do Rio São Francisco a 390 municípios castigados pela seca nos estados de
Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. No ponto de interseção, o
canal ainda não foi concretado. O prazo original para a transposição entrar em
funcionamento era 2010. O Ministério da Integração Nacional assegura que a obra
será concluída este ano.
A Transnordestina, entretanto, tem futuro
incerto. No canteiro industrial da obra, o barulho de obra foi substituído por
um silêncio que incomoda. Lançada em 2010 pelo então presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e propalada como a maior do mundo, a fábrica de dormentes – peças
de concreto onde são acomodados os trilhos – funciona no local e chegou a
produzir 4.800 unidades por dia, com 600 trabalhadores. Hoje, luz apagada, não
há ninguém trabalhando.
Pilhas de dormentes, com 366 mil peças
fabricadas, o suficiente para 220 quilômetros de trajeto, aguardam a retomada
da obra. A gerência de produção industrial garante que os dormentes, mesmo sem
uso, não correm risco de degradação, assim como as centenas de trilhos que
repousam no parque administrativo. “Eles não estragam. São feitos para durar”,
afiança um funcionário sem autorização para conceder entrevista.
No almoxarifado, um retrato contundente de uma
obra paralisada: móveis, eletrodomésticos e objetos que ficavam nas casas e
apartamentos dos funcionários e que, agora, lotam o galpão silencioso. Ao lado,
cinco ambulâncias empoeiradas – uma sem pneu, outra sem farol.
Rastro de abandono
De Salgueiro, a ferrovia segue para o porto seco
de Eliseu Martins (PI) e para os portos de Pecém (CE) e Suape (PE). Ao longo do
percurso, os rastros do esquecimento são visíveis. Mais de 200 vagões foram
deixados em cinco pontos diferentes – alguns com britas e dormentes, outros
vazios.
Há centenas de trilhos largados nos trechos em que a
obra foi interrompida, mato alto, estruturas de concreto rachando, passagens
desgastadas pela erosão e máquinas que ficaram pelo caminho e se tornaram um
monumento ao descaso com o dinheiro público num empreendimento que custava,
inicialmente, R$ 4,5 bilhões e até agora já consumiu R$ 6,3 bilhões. O
orçamento atual do projeto é de R$ 11,2 bilhões – o suficiente para construir
28 mil postos de saúde ou 12 mil escolas.
A construção da Transnordestina começou em 2006
e, a princípio, deveria ficar pronta em 2010. No auge, chegou a empregar 11 mil
pessoas. Hoje, são 829 trabalhadores, segundo a empresa que tem a concessão da
malha até 2057. A maioria, contudo, está de férias forçadas por causa de uma
suspensão da obra. Os oito canteiros que existiam foram reduzidos a dois.
Nenhum operário foi visto fazendo qualquer serviço na ferrovia.
De acordo com mapa da obra enviado pela
Transnordestina Logística, a ferrovia está pronta nos trechos entre Missão
Velha (CE), Paulistana (PI) e Custódia (PE). Mas, mesmo onde a construção foi
finalizada, os efeitos da paralisação podem ser sentidos. Num raio de 15
quilômetros do canteiro industrial de Salgueiro, vagões enferrujados pelo caminho
chamam a atenção de quem passa. A Transnordestina diz que as carruagens passam
por manutenção e são constantemente deslocadas para evitar danos.
Não é o que afirma o desempregado Luciano
Bernardino, 36 anos. O terraço da casa dele é uma varanda para o esquecimento.
São 20 vagões nos trilhos que passaram por cima do terreno da família. “Esses
vagões estão abandonados aí faz uns seis meses. Ninguém aparece para tirar eles
daí não”, assevera.
Luciano simboliza os sentimentos antagônicos que
marcam a relação de Salgueiro com a ferrovia. A expectativa alimentada no
início da obra foi atropelada pela frustração. Ele e mais três irmãos chegaram
a trabalhar na obra, mas acabaram demitidos. Enxergam o futuro com ceticismo.
“Eu era motorista de caminhão. No começo, eram só flores. Depois, vieram as
consequências. Cheguei a trabalhar para três empresas. De repente, mandaram
todo mundo embora e falaram que, se a gente quisesse nossos direitos, só na
Justiça. Derramamos muito suor nessa obra”, lamenta.
Nenhum dos quatro irmãos conseguiu outro
emprego. O auxiliar de produção Antônio Bernardino, 37, trabalhou por quase
oito anos na construção da ferrovia. Ainda tem R$ 74 mil a receber. “Agora está
ruim porque todo mundo ficou desempregado e as coisas começaram a apertar.
Estamos vivendo da roça. O que a gente mais queria é que a obra voltasse”, diz
ele, desempregado há oito meses. Em Salgueiro, é fácil ver pontos de comércio e
serviço fechados, com placas de aluguel ou venda.
Na altura da cidade de Terra Nova, no sertão
pernambucano, a paisagem rural é cortada por trilhos com cerca de 150 vagões
abandonados, cheios de pedras. Junto a eles, três carcaças: uma de gado morto
pela seca e dois caminhões fora de estrada depenados, sem condições de uso, com
seus pneus gigantes retirados suas estruturas se deteriorando.
Por todo o percurso, os sinais de desgaste se
anunciam. Por falta de manutenção, a erosão corrói estruturas, a ponto de
algumas terem rachado ou se partido. Foi o que ocorreu num trecho da ferrovia
em Araripina, sertão de Pernambuco, num viaduto que passa por cima dos trilhos.
A mais de 400 quilômetros dali, em Itaueira,
sudoeste do Piauí, onde ainda não há ferrovia construída, somente
terraplenagem, uma ponte sobre a rodovia PI-140 começou a ser erguida, mas o serviço
ficou inacabado. Quem passa pelo local se depara com vergalhões enferrujando,
pedras amontoadas, placas de concreto e uma estrutura de ferro deixada numa
estrada de barro.
O destino da ferrovia no Piauí é o porto seco de
Eliseu Martins, onde o acesso se dá por uma estrada de barro em condições
precárias e a obra da Transnordestina se resume a uma clareira gigante aberta
no meio do cerrado, sem trilhos, corroída pela erosão, com equipamentos
deixados a céu aberto e nenhum rastro de construção. <> Globo //