Uma cela projetada para oito detentos está com quase
30. Sem espaço para se deitar, eles se espremem uns nos outros, amarram pernas
e troncos nas grades em uma espécie de rede. Alguns deles dormem com a cabeça
próxima a uma latrina, que na verdade é um imundo buraco no chão com um fio de
água encanada. Há pouca ventilação, quase nenhuma iluminação natural e um calor
de uma cidade no meio do Pantanal em que os termômetros geralmente passam dos
30ºC. Por isso é comum se deparar com presos se debatendo para espantar baratas
e outros insetos. O depósito humano, como senzalas na época da escravidão, era
onde Anderson Nunes da Silva, 41 anos, cumpriu pena por sete anos no município
de Corumbá, em Mato Grosso do Sul, na fronteira do Brasil com a Bolívia. Nesta
semana o Supremo
Tribunal Federal entendeu
que ele deverá ser indenizado em 2.000 reais pelas condições degradantes em que
viveu nesse período.
A principal corte do país fez questão de deixar registrado que o caso gera uma repercussão geral, ou seja, deve valer para os outros
semelhantes em que presos ingressarem com o questionamento no Judiciário. A
tese defendida pela maioria dos ministros do STF ficou assim grafada:
“Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em
seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento
jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da
Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais,
comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência
das condições legais de encarceramento”.
A contundência da sentença ganha ainda mais peso num momento em que o
país volta a ser obrigado a encarar a situação do colapsado sistema prisional
brasileiro. Só neste ano, rebeliões registraram mais de cem mortes em
penitenciárias pelo país, num quadro de caos que está distante de ser
solucionado. Casos como o de Silva foram inúmeras vezes relatados em documentos
elaborados pelas mais diversas fontes, entre elas, o Conselho Nacional de
Justiça, as ONGs Human Rights Watch, Pastoral Carcerária e Conectas Direitos
Humanos, além de dezenas de sindicatos de agentes penitenciários. Nos últimos
sete anos, dezenas de relatórios mostraram que as cadeias brasileiras registram
situações similares a de masmorras. Além da
superlotação, hoje há mais de 600.000 presos em 370.000 vagas, as queixas se repetem ano a ano.
Mais do que reparar um dano causado pelo Estado, a decisão é vista como
um recado aos governantes. “A decisão reconheceu que o Estado precisa tratar os
presos de maneira humana. Ela tem um caráter pedagógico. Talvez, agora, os
governantes vejam que vale mais a pena investir no ser humano do que tratá-lo
pior dos que animais”, afirmou o defensor público Paulo André Defante, que em
2003 ingressou com todos os processos cobrando indenizações do Estado.
Só no presídio de Corumbá, onde Silva cumpria sua pena por latrocínio
(roubo seguido de morte), havia uma lotação de quase três vezes a sua
capacidade e foram apresentados outros 268 processos como o vitorioso agora no
Supremo. Em metade deles, a Justiça concordou com algum tipo de indenização, na
outra metade, não. Parte desses processos agora deverá ser revista pelo
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul e deve gerar uma enxurrada de
indenizações para criminosos condenados pelos mais diversos delitos. E não
apenas neste Estado.
Debate sobre as indenizações
Essa ameaça de uma enxurrada de processos na área prisional preocupa o Governo. Em sua
argumentação no processo que tramitou no STF, a Advocacia-geral da União (AGU)
alegou que, se o poder público tiver de pagar essas indenizações, o valor
acabará sendo usado pelo condenado para seu próprio benefício, e deixará de ser
aplicado no sistema prisional. “O valor correspondente à indenização por danos
morais, a ser paga ao recorrente, será destinado ao seu patrimônio particular e
deixará de ser utilizado em prol da ampliação e melhoria do sistema
penitenciário. Assim, os demais apenados e a sociedade como um todo sairão
prejudicados”, diz trecho da defesa da União.
Condenado a 20 anos de prisão, o ganhador da causa no STF estava desde
2012 em liberdade condicional e sua pena será concluída em 2019. Quando o
processo chegou ao Supremo, em 2008, familiares da vítima de Silva criticaram a
possibilidade de o poder público indenizá-lo. Como uma pessoa condenada por
latrocínio poderia receber recursos do Estado? O discurso é seguido pelo
secretário de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul, José Carlos
Barbosa.
“Me leva a acreditar que famílias que foram vítimas desses criminosos e
o cidadão comum, que vive em situação degradante por falta de habitação, por
falta de saúde, de infraestrutura, com muita mais razão, possam dirigir-se às
Defensorias Públicas para pleitear indenização pela situação que ele vive e
também por suposta ausência do estado”, disse Barbosa para
a TV Globo.
O defensor Defante rebate essas críticas: “Se até o preso tem de
reclamar melhores condições nos presídios, por que não o cidadão que espera na
fila do posto de saúde? Por que não o que não tem uma escola de qualidade? E
por que não o que foi vítima de um criminoso? As pessoas têm de entender que
todas elas têm esse direito”.
Defante diz que em nenhum momento quis deixar o detento rico. “Se a
indenização fosse de um real, de cinquenta centavos, já bastaria. A decisão é
uma vitória dos direitos humanos. É o Judiciário reconhecendo essa falha
gravíssima do Estado brasileiro”.
Além da situação de superlotação, é reconhecida o domínio tácito do
sistema por grupos criminosos. Nos presídios masculinos é comum ver detentos
sendo “forçados” a se alinharem a determinada facção criminosa para poder se
proteger. Nas prisões femininas faltam até absorventes íntimos, que
acabam sendo substituídos por miolo de pão. Em algumas prisões, por
exemplo, condenados pelo não pagamento de pensão alimentícia dividindo celas
com homicidas ou chefes de gangues que traficam drogas e armas. Em ambas, há um
elevado número de presos que não foram julgados – mais de 40% – além dos casos
em que não há distinção de detentos por periculosidade, o que joga parte da
responsabilidade da situação sobre o próprio Judiciário.
É consenso entre todos os especialistas que, quando não se dá o mínimo
de condições para o cumprimento da pena, a agressividade dos detentos e a
tensão entre eles só aumentam. Esses, aliás, foram fatores que se somaram à
disputa de poder entre facções para para provocar as chacinas do início deste
ano no Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte. <> Agência El País //