Por volta das 3h15, três homens entram
caminhando por uma rua estreita e esburacada de Juba, capital do Sudão do Sul,
onde funciona um alojamento da organização não governamental Nonviolent
Peaceforce. Em cima do muro de dois metros de altura, uma fileira grossa de
arame farpado foi colocada para dificultar qualquer tentativa de invasão. Mas
os homens conseguem se meter por uma pequena brecha e rendem dois seguranças
desarmados. “Eu tentei brigar com o primeiro que pulou, mas logo veio o
segundo. Eles me bateram e me jogaram no chão”, contou um deles mais tarde.
Ninguém dentro dos quartos sabe que o alojamento foi invadido. Após
render os guardas, os três homens, com a ajuda de um facão, arrombam a janela e
invadem o primeiro dormitório. “Acordei com o barulho e, quando meus olhos se
acostumaram à escuridão, percebi que três homens tinham invadido meu quarto. Dois
armados com AK-47 e outro, com um facão”, relembra Sashimal Yohan, natural do
Sri Lanka. Depois de roubarem tudo de valor, os homens o levam até uma das
portas ao lado e o obrigam a chamar pelo nome a pessoa que dorme lá dentro. Com
medo, Yohan bate à porta e pede ao amigo Marco que a abra. Sem desconfiar de
nada, Marco, um português que também trabalha na organização, abre a porta e,
do mesmo modo, é rendido e assaltado.
Enquanto tudo isso acontecia, eu dormia no cômodo entre os quartos de
Yohan e Marco. Mas, como era apenas minha segunda noite no país e eu ainda não
havia sido apresentado a Yohan, ele pulou o meu quarto por acreditar que estava
vazio. “Eles tentaram abrir a porta e a janela do seu quarto antes de irem para
o do Marco, mas não conseguiram”, disse Yohan no dia seguinte. Depois de quase
duas horas assaltando os quartos, os homens foram embora levando tudo que
conseguiram carregar.
Estamos no Sudão do Sul, que, de acordo com o Índice de Paz Global
realizado pelo Institute for Economics and Peace, é o quarto país mais
perigoso do mundo, atrás da Síria, do Iraque e do Afeganistão. Em meio à guerra
civil que arrasa a nação desde dezembro de 2013, a economia, que nunca chegou a
começar a funcionar bem, parou de vez. Os poços de petróleo do norte, que
seriam a principal fonte para fazer o país prosperar, não podem ser totalmente
explorados por conta da guerra. Quebrado, o governo sul-sudanês depende única e
exclusivamente de ajuda externa. Dessa forma, além da guerra civil, a criminalidade
comum aumenta bastante nas principais cidades. Embora não seja possível cravar,
muito provavelmente os três assaltantes que invadiram o alojamento da
organização eram militares do próprio exército sul-sudanês.
Em consequência do antigo conflito com o
Sudão, grande parte da população do Sudão do Sul recebeu formação militar e ocupa cargos nas Forças
Armadas do país. Coincidência ou não, quando há atraso no pagamento dos
salários dos militares, aumenta o número de saques na capital. E os alvos
geralmente são as organizações internacionais — únicos locais em que há dólares
e artigos de valor. Nos três meses anteriores à minha chegada, 38 residências
onde viviam estrangeiros foram assaltadas.
Fora isso, Juba parece quase igual a muitas
outras pequenas cidades africanas. Eletricidade não há, só por gerador. De
todas as ruas da cidade, apenas cinco são asfaltadas. Grupos de crianças jogam
futebol em terrenos baldios e cheios de mato, enquanto outros, na falta de
carrinhos, usam pedaços de madeira para empurrar uma velha roda de bicicleta e
correm como loucos pelas ruas esburacadas.
Um carioca no Sudão
do Sul
O Sudão, de maioria árabe, e o Sudão do Sul,
cristão, travaram algumas das guerras civis mais longas do continente africano. A primeira delas
aconteceu de 1962 até 1978, e a segunda começou em 1983 e só acabou em 2005.
Foi só em julho de 2011 que o Sudão do Sul finalmente se tornou um país
independente.
Mal deu tempo de comemorar e a nação caiu em
uma nova guerra civil, dessa vez entre suas duas etnias principais: os Dinkas e
os Nuer. A rixa entre os grupos é antiga, com massacres perpetuados por ambos
ao longo das últimas décadas. Quando o Sudão do Sul passou a ser um país independente, o jeito encontrado para
acomodar os interesses das duas etnias foi indicar um representante dos Dinka
para a Presidência e um representante dos Neur para vice. Porém, antes do fim
do mandato, o então presidente Salva Kiir acusou o vice, Riek Machar, de
conspirar para ocupar seu cargo, e não só o expulsou do governo como indicou
outro Dinka para substituí-lo. Como diz um ditado popular africano, “quando os
elefantes brigam, quem sofre é a grama”: com a batalha política armada, cada um
dos desafetos levantou a bandeira da própria etnia, e o Exército se dividiu.
Quando a guerra civil começou, na noite de 15
de dezembro, o carioca Thiago Wolfer estava trabalhando em uma cidade chamada
Wanjuk, e sua mulher estava em Juba. “Foi um momento muito tenso. A casa onde
minha mulher vivia foi invadida por soldados Dinkas, todos bêbados”, relembra o brasileiro. Formado em Relações
Internacionais com ênfase em Análise de Conflitos Internacionais, ele decidiu
ir para o Sudão do Sul para trabalhar como coordenador da Nonviolent
Peaceforce. Hoje, depois de três anos no país, pode-se dizer que Wolfer é o
maior especialista brasileiro no Sudão do Sul.
No entanto, mesmo com tantos desafios, algumas
vivências positivas fazem todo o esforço valer a pena. Em maio de 2014, Wolfer
viveu uma das suas experiências mais especiais no país, enquanto trabalhava em
uma região chamada Old Fangak — dominada pela oposição Nuer. Três civis naturais de Uganda
foram presos por soldados Nuer e acusados de espionagem, já que, como se sabe,
Uganda apoia claramente os Dinkas, inclusive com tropas militares. “Os três
foram acusados e seriam executados em poucos dias. Rapidamente, fui deslocado
para esse caso e, depois de um processo de negociação que durou uma semana, nós
conseguimos tirá-los de lá com vida. Foi uma pequena vitória!”, finaliza.
Do sertão ao Sudão
Aos domingos, o despertador de Raimundo costuma tocar às 6h30 da manhã. Depois
de tomar o café da manhã e fazer sua oração matinal, ele se arruma, coloca a
bata na mochila e segue para o campo de refugiados de Juba. Lá, reza a missa
semanal em uma construção simples de ripas de madeira, telhado de zinco e chão
de terra batida, onde se amontoam entre 400 e 500 pessoas, sentadas em cadeiras
de plástico ou de pé nas laterais e nos fundos.
Nascido em Balsas, interior do Maranhão,
Raimundo Rocha dos Santos decidiu se dedicar à vida religiosa aos 21 anos. Foi
ordenado padre em 2005 e, depois de destinar cinco anos ao trabalho missionário
no Maranhão, resolveu ir para o Sudão do Sul. Chegou em junho de 2010, apenas
13 meses antes de o país se tornar oficialmente independente: “Eu me lembro que
naquele período falava-se muito em desenvolvimento,
existia a esperança de que o país finalmente prosperasse”.
Quando a guerra estourou, além da missão da qual Raimundo faz parte,
havia outras cinco ONGs na cidade. Com a invasão iminente, todas elas tiveram
de evacuar, mas Raimundo e os demais missionários decidiram ficar. “Éramos
nove, cinco homens e quatro mulheres. Resolvemos ficar para que a nossa
presença inibisse as atrocidades que
as tropas infligiam aos civis”, explica. Dias depois, eles receberam um recado
pelo telefone via satélite dizendo que quem estava na linha de frente, abrindo
caminho para as tropas do governo, eram mercenários muçulmanos de Darfur. “O
comunicado dizia que esses mercenários matavam todos que encontravam pela
frente e, como eram muçulmanos, não respeitariam a igreja católica”, conta
Raimundo.
Ele e os outros missionários, então, fugiram
para um vilarejo às margens do Rio Nilo onde ficaram por 18 dias. Eles dormiam
em montes de capim, bebiam água do mesmo pântano onde tomavam banho e comiam o
que o povo oferecia. “Mas logo a comida acabou, e passamos fome por alguns
dias. Tivemos de pensar em uma solução para sair de lá”, relembra. Eles
concordaram que o jeito era mandar alguém até a cidade mais próxima para
negociar com a autoridade local. Uma senhora idosa se ofereceu para a tarefa,
argumentando que não seria morta, por ser mulher, tampouco violentada, por ser
idosa demais. “Àquela altura, todos nós pensávamos que iríamos morrer, mas
graças a Deus tudo deu certo e fomos resgatados.”
Passados mais de dois anos do resgate, os traumas vividos em Leer, em vez de afastarem o padre Raimundo
do Sudão do Sul, deram-lhe ainda mais força para continuar: “Infelizmente, vejo
uma longa estrada pela frente para a reconciliação entre os povos do Sudão do
Sul. Mas minha missão é trabalhar para que exista mais perdão entre eles, para
que um dia a paz seja estabelecida. Com calma, paciência e fé nós vamos chegar
lá”. <> Revista Galileu //